segunda-feira, 27 de junho de 2011




O mote é samba. Mas o sotaque é de Calcanhotto. Em álbum recheado de dedicatórias, Adriana não presta homenagem. Isso porque recusa a nostalgia para apresentar salutares desvios nos quais ambienta suas composições, com coloquial destreza para o inusitado.

Um dos que recebe menção honrosa na contracapa do disco é Jards Macalé, outro iconoclasta da canção brasileira. Aliado a ele vem Lupicínio Rodrigues, chamado tão intimamente de “lupi” que merece registro a maneira descompromissada com que Adriana se enverga do “micróbio do samba” dito pelo inventor da dor-de-cotovelo para dar nome à 12ª obra de sua carreira fonográfica (exceção à coletânea “Essencial” lançada em 2010).

Acompanhada em todas as faixas por Alberto Continentino no contrabaixo e Domenico Lancellotti na bateria e percussão (por vezes invertendo a ordem – ou seja – percussiva bateria e batida percussivista), Adriana começa sua saga rumo ao ritmo surpreendendo, como lhe é de seu fetiche nada usual em tempos demasiado óbvios.

Quem procura o tal micróbio do samba precisará de refinada lupa para encontrá-lo. Sim, pois os instrumentos presentes no álbum são tão inesperados quanto usar uma lupa para encontrar micróbio. E soam, além de criativos, agradáveis, dispensando a invencionice barata de grupos indie saídos em última fornada. A se notar o fato de que o som base é comandado por instrumentos elétricos tão rechaçados em ‘tempos idos’ (diria Cartola), sob a pretensão de defesa das raízes analógicas aqui instauradas pela miséria do povo.

Não se exclui o novo para abrigar o antigo. A riqueza com que Adriana desperta os olhares, ouvidos e gestos de sua matéria-prima é notável. Adriana lida poesia. Retira de cada sonoridade e palavra tudo o que podem oferecer em largueza e amplitude. Os sentidos deitam-se abertos ao deleite individual. Na primeira faixa, “eu vivo a sorrir” (assim grafadas minúsculas todas as palavras do disco), há exemplos que se cruzam soltos, envoltos pela atmosfera típica do samba (fadado fado; acaso caso). O que passará desapercebido por aqueles comprometidos com as verdades estáticas de uma vida mais maleável do que se lhes apresenta. Sem fazer pouco caso, Adriana e um de seus comparsas riem ao final.

“aquele plano para me esquecer”, brinca com contrastes, novamente: seu plano para me esquecer, esqueça, vaticina. E comporta a beleza rítmica do samba, sob os toques de um piano velejado aos dedos irreverentes de Calcanhotto. O clima revanchista e rancoroso, presente na terceira faixa, enclausura com propriedade a guitarra vertiginosa tocada por Adriana. “pode se remoer”, expõe no título do que se trata. E ainda remodela palavras, mantendo a sonoridade e o sentido primordial, como no caso de ajuizar/ajoelhar substituídas uma pela outra em versos, de resto, idênticos.

“mais perfumado”, oferecida à Thaís Gulin, enaltece o amor incondicional que se sujeita a provações inaceitáveis para muitos. O homem que trai é temática comum no mundo do samba, a mulher que mais do que desconfia, sabe, é mérito da lavra de Adriana. A música conta ainda com a “luxuosa”, como destacada pela própria cantora no encarte, participação de Davi Moraes e sua viola morna, que inaugura o sentir buliçoso do álbum.



“beijo sem”, já lançada com sucesso por Marisa Monte, e oferecida para ela mesma, põe à prova o canto narrativo e lento de Calcanhotto, como a sombrear palavras e requerer sons. É também faixa mais expansiva e menos interiorizada que as anteriores, abrilhantando o mosaico (como a obra de Leonílson – “Puros e duros – Ouro de artista – Ilusões”).

“já reparô?” permanece no tom da mulher que se coloca em primeiro plano, e ao invés de lamentar, se vangloria e provoca: a sua nova namorada, querida, pode ser linda e safa, (...) porte de gazela, olho de leoa, ser muito versada e hábil com a língua, do tipo que domina idiomas, mas ela não samba...”. E frases de conotação determinista: “o amor é o hiperquântico, e eu devo lhe fazer falta numa dada hora”. A ironia se estabelece, sem fazer concessões. Rodrigo Amarante pontilha generosamente solos de guitarra.

Outra canção com título questionador “vai saber?”, lançada e oferecida para Mart’nália, marca o ponto do disco em que o samba se esgueira com mais focinho tradicional. A se reparar o fato de Adriana tocar cuíca nessa faixa e caixa de fósforos na seguinte, “vem ver”. Numa, o rejeitado que sente raiva e ameaça o troco, noutra, o mesmo personagem, com a promessa de fazer de tudo para reconquistar o tal amor (perdido ou encontrado).

O chorístico cavaquinho de Davi Moraes, introduz a seara carnavalesca iniciada com “tão chic”, onde a sutil pronúncia de Adriana tem papel fundamental para a percepção da diferença em versos “si” e “se”. Nessa música, um exercício de cinismo com a eternidade, do “amor eterno até a quarta-feira”, sinalizando tom debochado com relação à festa. Na seguinte, “deixa, gueixa”, uma alegria exaltante em ritmo de bandeja de chá tocada por Adriana, em alusão ao objeto referido na letra. Com sagacidade, a faixa ganha coro de bloco e torna mais intimista a música, que vai do Ocidente ao Leme, dedicada para Hiromi.

No fim, “você disse não lembrar” é sensível composição bem aclimatada ao tempero tradicional do samba, enriquecida por toques de faca e prato de Moreno Veloso, que traça um caso de amor quase desfeito. “tá na minha hora” sinaliza o intento da autora dos versos, como síntese do trabalho feito: “despi as suas fantasias devagarinho, da sua onipotência tratei com jeitinho, e das chegadas de madrugada, no sapatinho, agora tá na minha hora...”.

E despede-se, erguendo a bandeira de sua Estação Primeira de Mangueira, inspiração para as cores que se destacam na belíssima capa do disco, via arte de Luiz Zerbini, Fernanda Villa-Lobos e Caroline Bittencourt. A “moça dos agudos de cristal”, que despertou o fascínio do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu em 1989, segue sua sina quebradiça de pérolas e diamantes. Com caminho livre para os rubis, em meio às pedras.



Raphael Vidigal Aroeira

Publicado no jornal "Hoje em Dia" em 05/07/2011.

domingo, 26 de junho de 2011

Músico demonstra carinho e admiração por artistas marginalizados




“Eu sou nada e é isso que me convém, eu sou o sub do mundo, o que será, o que será, que me detém?”. Lobão sempre marcou território como contraponto do panorama nacional e invariavelmente se insurge contra vozes totalizantes. Os versos de El Desdichado II servem como pequena amostra desse papel fundamental em que o artista atua. Especialmente numa sociedade cada vez mais preocupada em fechar sentidos e definir padrões de experiência estética superiores. Para atender ou quebrar as expectativas, o músico concedeu entrevista durante noite de autógrafos na livraria FNAC, e foi só elogios a nomes esquecidos pela grande mídia e estimados por ele. A lenda de que o temido lobo não compreende afagos desfez-se como um novelo mal tricotado.

R.: Como foi a história do violoncelo que você deu de presente ao Jards Macalé? Ele contou que vocês se encontraram no Baixo Leblon de madrugada e 8 meses depois chegou encomenda do ‘senhor Lobão’.
A história é mais complicada. Ela começa em 95. O Jards queria aprender a tocar violoncelo e eu tinha um. Aí fomos para o meu apartamento, eu morava no 18º andar e acabou a luz. Isso impossibilitou que a gente tocasse. Então a gente sempre se encontrava no show do Paulinho da Viola e tocava no assunto. Até que eu me mudei para um apartamento menor e aquele violoncelo virou um ‘trambolho’ dentro de casa. Liguei para o Jards, falei: ‘você quer aprender a tocar?’. Ele disse que queria. Inclusive não sei como acaba a história. Se ele está tocando ainda.

R.: Ele me contou que pegou uma tendinite e acabou doando para uma amiga que dá aula de música no Complexo do Alemão.
(Risos) eu sabia que isso ia acontecer. Macalé é uma figura admirável. Por quem eu tenho muito carinho. É um gênio. E muito engraçado. Deprimido e engraçado. Igual a mim. A gente vai fazer muita coisa junto ainda. Naquele momento, ele queria estudar violoncelo e eu violão clássico. Ele toca um violão sensacional, então eu mostrava o que aprendia de Villa Lobos. É um intercâmbio maravilhoso.

R.: Fale um pouco sobre o Sérgio Sampaio.
Sérgio Sampaio foi uma vítima da Tropicália. Ele, assim como o Tom Zé e o Jards Macalé foram bypassados pela famosa ‘máfia do dendê’. O Macalé produziu o melhor disco do Caetano Veloso (Transa) e não recebeu os créditos. A partir dali, ficou isolado da música brasileira. Isso aconteceu com o próprio Sérgio Sampaio, o Raul Seixas e todo mundo que não entrou naquela onda. Todo mundo que era mais ou menos legal desapareceu. Ficou Gil e Caetano.

R.: Como foi seu encontro com o Paulinho da Viola?
Paulinho da Viola é uma das pessoas mais delicadas que eu conheci. Frequentei a casa dele na época do (álbum) ‘Nostalgia da Modernidade’, para mostrar umas composições minhas. Ele ouviu o CD atentamente 3 vezes, com uma minúcia impressionante. No final ele disse que eu estava cantando mais suave, elogiou minhas músicas, que nunca imaginaria fazer samba daquele jeito. Mas pediu para que eu não abandonasse o rock, que ele também gostava muito. Um dos caras que você tem a impressão de ser mais tradicional, com essa percepção ampla. Paulinho da Viola é um privilégio raro.

R.: E com o Nelson Gonçalves?
Nelson Gonçalves virou meu parceiro, meu brother, meu irmão. Um cara totalmente rock´n´roll, que eu chamava de senhor e recebia xingamento em troca. Fiz uma música para ele que gravamos juntos, ‘A Deusa do Amor’, inspirada no repertório passional que ele interpretava. Ele chegou a me chamar de filho algumas vezes (risos).

R.: Sua autobiografia, ’50 anos a mil’, escrita em parceria com o Cláudio Tognolli, inicia-se com o episódio do enterro do Júlio Barroso em que você e Cazuza se viram órfãos. Fale um pouco sobre o Cazuza.
Eu era o melhor amigo do Cazuza. Mas ele foi vítima do próprio amor da família. Ele morreu e a família quis transformá-lo numa coisa MPB. Aí ficou nem barro nem tijolo. Higienizaram a obra dele. Eu brincava com ele, ‘tu vai morrer duas vezes, porque quem vai escrever o prefácio da sua biografia vai ser o Caetano Veloso’. Não deu outra. Se você perceber, o Caetano exalta o Cazuza como um cara muito bom daquela época, dos anos 80. É como elogiar os ombros do Paulo Ricardo. O Paulo Ricardo toca bem contrabaixo, canta bem, tudo bem. Mas os ombros são maravilhosos. Então ele é muito cruel, nesse ponto. Eu falava, ‘Cazuza a gente precisava ter uma ruptura’. Mas ele gostava muito de Dolores Duran, samba-canção, música brasileira, então ficou meio na dúvida em dar aquele salto.

R.: Para finalizar, Júlio Barroso?
Uma pessoa das quais eu sinto mais falta. Eu anuncio com a morte do Júlio Barroso, em julho de 1984, o fim do rock nacional. Isso tudo está no livro.

Livro: Lobão – 50 Anos A Mil
Autor: Lobão com Cláudio Tognolli
Editora: Nova Fronteira
Preço médio: R$35




Raphael Vidigal Aroeira

Publicado no jornal "Hoje em Dia" em 25/06/2011.

quarta-feira, 22 de junho de 2011




Você já ouviu a voz que toma corpo? Da favela vem magra, faminta, intacta e assim permanece. Carrega a cabeça uma lata d’água e nas mãos uma prece, que se estende aos quadris da mulata assanhada, sobe pelas paredes. E alcança no céu um Ary Barroso e um Louis Armstrong. É a mistura sem jeito, sem tato, aos barrancos, mancando ao sapato um tamanco de barro, suor e pilão. Chame de bossa negra, suingue, jazz, funk ou samba na avenida. Ela apenas destila o que chama de corpo é a voz que arrepia: Elza Soares da vida, patrimônio mal resolvido num país de descidas, sucata e música aborígene.



Se acaso você chegasse

Escrito por Lupicínio Rodrigues em parceria com Felisberto Martins em 1938, o samba “Se acaso você chegasse” fez sucesso com Ciro Monteiro. Na estréia em disco de Elza Soares, no ano de 1959, a peça ganhou o contorno da voz jazzística da cantora, substituindo frases do refrão por sonetos sonoros que deixam no ar a real intenção dos personagens. À história de amor desfeito e amizade posta sob perigo de Lupicínio Rodrigues, Elza adentrou com intimidade e atrevimento, sem perder a dor-de-cotovelo.



Mulata Assanhada

Ary Barroso determinou em 1950 que o maior compositor popular brasileiro era seu conterrâneo mineiro, Ataulfo Alves. Seis anos depois, o prestigiado sambista lançou obra prima de sua autoria, outra delas, “Mulata Assanhada”. Lançada por Elizeth Cardoso, a canção corre no tempo esperto e sinuoso das curvas da mulata em questão. Regravada em 1960, sem demérito nenhum para a primeira gravação, pela personificante Elza Soares, tornou-se emblema de sua figura: “Ô mulata assanhada, que passa com graça, fazendo pirraça, fingindo inocente, tirando o sossego da gente.” A incorreção política de Ataulfo aparece ao recorrer aos provocantes versos: “Ah mulata se eu pudesse, e se meu dinheiro desse, eu te dava sem pensar, essa terra, esse céu, esse mar. Ela finge que não sabe que tem feitiço no olhar. Ai meu Deus, que bom seria, se voltasse a escravidão, eu comprava essa mulata e prendia no meu coração, e depois a pretoria é que resolvia a questão!”



Estatutos de Gafieira

A menina Elza da Conceição Soares, casou-se, obrigada pelo pai aos 12 anos de idade, com um menino de 17. Mãe aos 13, viúva aos 18 anos, viu a vida precoce deslizar no asfalto. Soube manter a pose e equilibrar-se no morro, apreciada em sua imaturidade pelos “Estatutos da Gafieira”. Retirando deles a melodia para superar as adversidades, Elza Soares, já nascida cantora e desde sempre acalentada por seu canto rompedor, regravou em 1966 o samba dançante e esquio de Billy Blanco, conferindo a ele sua pulsação singular. Como diz a biografia da cantora lançada em 1997, escrita por José Louzeiro, é Elza “cantando para não enlouquecer”.

Salve a Mocidade

Elza Soares sempre puxou pela força do canto as barreiras que tentaram derrubá-la. Cantou o samba de carnaval de Luiz Reis, escrito em 1975, exaltando a escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel. Mas também o que existe de “mais quente”, o povo e sua festa, sendo ela mesma, o carnaval na essência, superando toda quarta-feira que foi cinza em sua vida. Ansiando a folia.



Edmundo – versão de In The Mood

Aloysio de Oliveira aproveitou-se de uma interpretação vocal para transformar o sucesso americano de Glen Miller, composto por Joe Garland e Andy Razaf, In The Mood, no sucesso brasileiro de proporção internacional, “Edmundo”, em que se vale das trapalhadas de seu protagonista. Lançada por seu “Bando da Lua” em companhia de Carmen Miranda em 1954, a música recebeu regravação de Elza Soares e entrou para a galeria de estouros de seu repertório. Sem perder o requebrado e o bom humor, Elza mantém a forma ao interpretar diversas mancadas e peripécias no universo musical em que ressoa a vida.

Devagar com a louça

Elza Soares viveu um tórrido romance com Mané Garrincha que lhe valeu muita tristeza e também muita felicidade. O filho do casal, Garrinchinha, morreu em acidente automobilístico em 1986, abalando muito a cantora, que já havia perdido filho para a fome. No entanto, Elza soube superar as agruras que lhe foram impostas, e “devagar com a louça”, recuperou seu terreno. A voz acoplada à melodia que lhe é impregnada pelo timbre aguçado e intransferível marca a releitura da cantora no samba composto em 1963 por Haroldo Barbosa e Luiz Reis: “Devagar com a louça que eu conheço a moça vai devagar...”



Boato

O violão paterno e os ouvidos grudados no rádio deram à Elza Soares a oportunidade de conhecer Noel Rosa, Geraldo Pereira e Ary Barroso, que lhe abriu as portas pessoalmente para o estrelato, depois de zombar de sua roupa e arrepender-se, mesmo que veladamente, nomeando aquela menina humilde e tempestuosa de estrela. Interpretada com a avidez de sempre, Elza Soares soube dar ritmo certo ao samba de 1961 de João Roberto Kelly, “Boato”, em que sua voz alerta triste os infortúnios sombrios do ilusionismo.

Beija-me

A pitada de jazz que Elza Soares acrescenta ao samba que pratica é que garante a autenticidade sonora de seus retumbantes graves, agudos e tudo mais que endossa sua voz inigualável. Sejam rasgadas as interpretações, ou disfarçadas sob a fantasia de um véu macio, a música espalha-se em Elza Soares ao deleite de desvios maternos, femininos, vorazes. “Beija-me”, samba de 1943 de autoria de Roberto Martins e Mário Rossi, sucesso de Ciro Monteiro, é um convite irrecusável, feito pela cantora do milênio, segundo a BBC de Londres. Gravado por Elza Soares em 1961. “Beija-me, deixa o teu rosto coladinho ao meu...”



Língua

Houve quem quisesse destruir Elza Soares (policiais covardes, jornais sensacionalistas), sem perceber que estímulos sonoros são inquebrantáveis. Qual então a força do canto que remete aos primórdios do haver humano, e mais ainda, bulido à margem do trompete de metal que se ergue aos ombros de quem sassarica sem vergonha de tentar ser feliz. Tudo através da música que rege a vida. A onda sonora que abate oportunistas desventurados no caminho da rainha de argila, feita de água e terra, com a verdade que compreende conquistas. Por isso a “Língua” de Elza Soares soa tão afiada e corta como lâmina quem a quiser corrompê-la de hipocrisia. Aos prazeres modestos, sem a imoralidade insólita, ela se derrete, sem medo. E junta sua língua à de Caetano Veloso, em 1984, rap esperto e afinado. Um ano depois, gravou disco produzido por Caetano e Lobão.



Malandro

A música de Elza Soares, tal qual a perfeita expressão da personalidade, combina rítmica, harmonia, melodia e letras bem trabalhadas, embelezadas por seu canto instigante e bardo, nas mais altas prateleiras da atemporalidade. “Malandro”, samba de 1976, foi lançado por Elza Soares junto com o compositor Jorge Aragão, que divide a autoria da música com Jotabê. Os versos relatam um aviso de que o amor representa perigo. Mas vale o risco, tão bem ritmados por Elza Soares.

O Mundo Encantado de Monteiro Lobato

Em 1967, a pioneira Elza Soares tornou-se a primeira mulher a puxar um samba-enredo na avenida, com “O Mundo Encantado de Monteiro Lobato”, de autoria de Batista e Darcy da Mangueira, Hélio Turco, Jurandir, Luiz e Dico. A relutância em ser precoce não infringiu à Elza a fuga de seu destino. Tudo lhe veio cedo, lhe foi cedo, muito permaneceu. Por exemplo, o canto, a vontade, a luta cotidiana contra o infortúnio, a certeza da alegria. Como diz o bloco criado por ela própria, “Deu a Elza” na avenida!



Dor de cotovelo

No renovador álbum na carreira discográfica de Elza Soares, “Do cóccix até o pescoço”, lançado em 2002, a cantora gravou um samba-canção magnífico de Caetano Veloso, em que ressalta com toda sua voz vitimada por carinhos e torturas as malícias de um relacionamento complicado, tardio, enfim, desfeito por artimanha do ciúme. “O ciúme dói nos cotovelos, na raiz dos cabelos, gela a sola dos pés...”

Palmas no portão

Em 1967 Elza Soares iniciou parceria com o cantor Miltinho que acabou por render 3 antológicos discos, combinando o suingue da cantora e a apurada noção rítmica do colega. Mais tarde, em 1972, bancou parceria com o iniciante Roberto Ribeiro, que provaria que seu faro para descobrir talentos estava certo. Mas é de 1967 a composição “Palmas no portão”, de Valter Dionísio e D’Acri Luiz. Elza abusa no samba de sua privilegiada voz sinuosa, e reclama de saudade: “Ôôôôô há mais de uma semana que eu não vejo meu amor...”

Pranto Livre

“d’O pranto que é privilégio de quem sabe amar”. Elza ama, amou, amará. Essa é sua verdade. Que perpassa aos berros melodiosos, ritmados, harmônicos de uma voz que exulta infinita a beleza que há em cantar, cantar, cantar...ouvir Elza Soares. “Pranto Livre”, samba-canção de 1974, de Eduardo da Viole e Dida, liberta a melancolia para que sobre ela se aviste a dor, apinhada de busca da felicidade.

"Se não fosse cantora, seria prostituta" Elza Soares



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 26/06/2011.

sexta-feira, 17 de junho de 2011




Torquato Neto, Emilinha Borba, Debussy, Wally Salomão, Dóris Monteiro, Beethoven, Cazuza, Guimarães Rosa, Radamés Gnatalli, Tim Maia, Glauber Rocha, Jacques Brell, Itamar Assumpção confluem-se no rio JARDS, de ondas sonoras como o “bater de asas de uma borboleta.” “Quero, principalmente, o som do silêncio.”

MACALÉ, apelido de garoto ruim de bola e habilidade no violão, supera definições sobre música. Permanece incapturável e característico, espécime raro em qualquer época: “Joguei pela janela os catálogos todos, samba, funk, música moderna, contemporânea, antiga. A carteira de identidade da música é a própria. Som é som. Não som é não som. E não som também é som. Não entendo essa necessidade desesperada de complicar a compreensão.”



No colo da avó, “uma voz límpida, pequenininha, afinadíssima”, vem a primeira lembrança musical, estendida para a “bela voz da minha mãe, hoje com 91 anos, facilidade natural para tocar piano, sem nunca ter estudado”, e os concertos de ópera no Teatro Municipal aos quais era levado pelo pai, ainda garoto, “calças-curtas”.

Foi a força desse impacto sonoro em sua vida, que levou JARDS MACALÉ a estudar orquestração e composição na PRÓ-ARTE do Rio de Janeiro com o Maestro Guerra-Peixe, análise musical com Stella Sclyar, violão e violoncelo, possibilitando formação erudita. Ao mesmo tempo, era copista de Severino Araújo na rádio Mayrink Veiga. E se especializou nos sopros e percussões da famosa Orquestra Tabajara. “Agora eu queria além dos sopros e das palhetas, as cordas, e fui fazer cópias para o Teatro Municipal”.



Chiquinha Gonzaga enobrecendo as teclas de Radamés Gnatalli fascina o músico, que ressalta: “Não sou tropicalista. Toda minha geração foi ouvinte da rádio Nacional, que tocava música popular e erudita. Radamés Gnatalli foi um músico erudito que inovou as orquestrações da música popular. Para mim, não existem mais fronteiras.”

Ele considera distintamente os integrantes do movimento antropofágico com os quais conviveu: “Fiquei zangado com o Caetano (Veloso), porque ele não colocou os créditos das pessoas que trabalharam com ele no disco TRANSA, - produzido por MACALÉ – mas outro dia nos telefonamos e rimos muito. Tenho o telefone dele desde 1958. Sempre tive. Não gosto de brigar com meus amigos DE VERDADE”. Sobre Gal Costa, arrepende-se: “Falei uma bobagem que não devia ter falado. Mas nunca brigamos. Meus ouvidos estão com saudade da voz da Gal.” E em relação à Gilberto Gil, encerra: “Continua lá, com aquela fala barroca. Eu acho graça.”

Outra briga musical de sua carreira foi com Dori Caymmi: “Ele trocou uma diminuta de uma música minha e eu não gostei. Entrei num lotação e o vi sentado. Fiz o maior escândalo, fingi que era gay, sentei no colo, gritei que tinha sido largado. Depois de um tempo percebi que a diminuta fazia sentido. Ficamos três meses sem nos falar por isso. Falei com ele, imagina se fosse uma aumentada?”



MACALÉ assegura que proibir carnaval é impossível, e se declara como um dos fundadores da festa que teve o primeiro bloco de samba inaugurado por Ismael Silva –“Deixa Falar”- o qual recebeu álbum em parceria com Dalva Torres como homenagem, nos dez anos de sua morte. “Pensei que a gente morresse, mas não. Morrer está fora de moda. Não precisa ser artista, qualquer pessoa tem uma história que na boca de outras continua. As pessoas não morrem, quer dizer, problema delas se morrerem.”

Amigos que se partiram continuam inquebrantáveis na memória de JARDS, personificando materialmente alguns deles à sua frente. Poeta que suicidou, Torquato Neto é um: “Vejo na minha frente. Os gestos, aquela mão meio mole. O timbre da voz.” Ao lembrar-se de outro parceiro, Duda, com quem compôs “Hotel das Estrelas”, MACALÉ recusa a fala do nome da ex-mulher, presente na capa do álbum “Contrastes”: “Quando o disco foi ser editado pra CD, ela criou um barraco para não publicar a foto. Veio a inspiração do Ronaldo Bastos – responsável pelo relançamento – de uma frase da música “Sem Essa”, ‘fazer um álbum de fotografias para depois queimar’. Resolveu botar fogo na foto e deixar só os pequenos lábios.”



Esse amor associado à dor foi o ponto de luz que guiou o poeta Wally Salomão a criar a LINHA DE MORBEZA ROMÂNTICA, presente no segundo disco de JARDS, “Aprender a Nadar”: “A música romântica brasileira sempre foi over, Orestes Barbosa escreveu, ‘a porta do barraco era sem trinco e a lua furando nosso zinco parecia um ESTRANHO FESTIVAL’. Wally queria uma coisa que fosse o over do over. Que exacerba essa dor da música brasileira.”

Das companhias ilustres que encontrou em suas peregrinações, MACALÉ elege Jorge Mautner como uma “pessoa fácil de transar amizade. O difícil é a manutenção. Ele é muito inteligente e rápido. É difícil acompanhar.” Afirma que decidiu “acompanhar só os bons”. E agradece a presença afetiva de Erik Satie, maestro Dino Krieger e o encontro espontâneo com o ídolo Moreira da Silva: “Por sorte, me coube tocar com ele no Projeto Seis e Meia – que promovia shows com duplas de artistas. Esse abraço da capa do disco que dediquei a ele é lindo. Um dos momentos mais...”



Entre seus cantores favoritos lista João Gilberto, Elza Soares e Adriana Calcanhotto. No campo internacional, MACALÉ, que canta em francês, espanhol e inglês, estima Bola de Nieve, cubano. Na literatura, aprecia Lima Barreto, as histórias de René Goscinny e Albert Uderzo, “Astérix e Obélix” e Guimarães Rosa. As artes plásticas lhe são sinônimo de Hélio Oiticica, inventor da palavra “Tropicália”, que criou um penetrável feito em metal e aço para o músico: “Foi uma surpresa. Só fiquei sabendo depois que ele morreu. Ele chamava todos os amigos masculinos pelo feminino. Ele mesmo era muito feminino. E escreveu na obra, ‘dedico ao meu amigo músico Jards Macalé, MA-CA-LÉ-A”.

No filme do diretor Marco Abujamra sobre o artista, que constata a falta do “Lado B – SEXO, DROGAS E ROCK´N´ROLL” - Um Morcego na Porta Principal, o dramaturgo Zé Celso Martinez Corrêa afirma que MACALÉ é “um semi-Deus, um artista do porte de uma Maria Galla, um Niemeyer”. O ex-ministro Gilberto Gil, define que o mesmo “não se preocupou em cuidar da carreira. Em fazer concessões que todos necessitamos”.

A respeito do episódio da música que tem verso inserido no título do documentário, ‘Gotham City’, Jards assume: “Fomos lá para despertar a reação das pessoas. Era um festival ‘nhém nhém nhém’. Entrei vestido numa bata enorme. Os outros músicos estavam com o peito nu, vendas nos olhos, todos fantasiados. Era história em quadrinho falando do momento (plena ditadura militar). Comecei a cantar com a interpretação que pedia a música. O Maracanãzinho inteiro se levantou. Quanto mais vaiavam mais eu enlouquecia. O resultado foi que chegamos anônimos e na manhã seguinte éramos conhecidos no país inteiro.”



Já o álbum “Banquete dos Mendigos”, lançado em ano da comemoração dos 25 anos da proclamação dos Direitos Humanos, nasceu como “uma piada. Todo mundo fazia show beneficente. Resolvi fazer um em auto-benefício. Só depois é que foi incorporada a coisa dos ‘Direitos Humanos’, com trechos da Constituição que tinham a ver com as músicas.” No disco, “Quatro Batutas e um Coringa”, associou a dor como motivação para cantar Lupicínio Rodrigues, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, “uma dor mais levemente exposta”, e Geraldo Pereira, “um gozador barra pesada”.

Atualmente, o músico (des)orienta-se ao som da guitarra de Roberto Frejat e a voz anasalada de Luiz Melodia, todos, segundo ele, integrantes de um mesmo circuito, do qual também fazia parte Cazuza, de quem confessa adorar a música: “Acho o maior barato”. Com um currículo recheado de excentricidades salutares, comenta o encontro com Vinicius de Moraes: “musiquei um poema feito por ele no Uruguai, ‘O Mais-Que-Perfeito’, e ele adorou’. E Lobão: “Nos esbarramos no Baixo Leblon de madrugada e no meio da conversa surgiu o assunto de um violoncelo que ele tinha encostado. Perguntou se eu queria, respondi que sim. Oito meses depois chegou encomenda do senhor Lobão na minha casa. Quando viajei para Barcelona comprei as cordas e dei um trato no instrumento. Adoro tocar violoncelo, mas peguei uma tendinite e resolvi doá-lo para uma amiga que dá aula de música no Complexo do Alemão.”



A campanha particular que vem empunhando, numa das únicas vezes que resolveu hastear bandeira em sua vasta carreira, não sofreu abalo da voz do ator e locutor pornochanchadístico (e dionisíaco, diga-se de passagem), Paulo César Peréio, que contestou a inclusão do AMOR na bandeira brasileira proposta por JARDS, sob a reflexão de que crimes são cometidos também em nome do amor: “Amor por princípio, ordem por base e progresso por fim. Eu falei para o Peréio que ele é o tipo de pessoa que precisa andar com um advogado. Ele diz as coisas mais naturais na cabeça dele. Mas com o poder do tom de voz, pode ser muito agressivo ou um mel. Ele vai acabar sendo processado por homofobia”, ri-se o inusitado MACAO, que debocha do técnico de som e questiona aos vendedores da loja de instrumentos se eles entendem o capitalismo: “complicado”, repete a resposta adquirida.

Amante do cinema, ator em filmes de Nelson Pereira dos Santos, como “Amuleto de Ogum”, no qual também foi responsável pela trilha sonora, e dos alunos da UFRJ, “Conceição – autor bom é autor morto”, sibila sinistramente, MACALÉ já gravou 70 horas em vídeo do DVD que vai ser editado pela Biscoito Fino em parceria com o Canal Brasil – e contou também com a ajuda financeira do próprio músico – e sairá em disco: “Quero incluir no roteiro ‘Cachorro, Bandido, Polícia, Dentista’ do Sérgio Sampaio e a prima decadente desse enredo, a ‘Estrupício’ do Itamar Assumpção, colando com ‘Orora Analfabeta’,- do cantor baiano Gordurinha (autor do hit de Jackson do Pandeiro, ‘Chiclete com Banana’) e Nascimento Gomes – fica...bacana”, conceitua a costura profana.



Sem a previsibilidade que se espera de produtos plastificados pela ordem mercadológica da atual doutrina musical explorada em televisões e rádios, Jards Macalé não estipula data de lançamento para o material: “Não tem essa de lançamento. Quando ficar pronto, pronto”. Afinal das contas contra a favor e nos interstícios, seu material é música, não outra coisa parecida (ou nem isso): “Arte é liberdade e criação. Criação necessita de liberdade para se manifestar. Eu voto na criação e na liberdade. Para isso, eu vivo tal qual eu faço minha música, com liberdade, dentro desse quadro fajuto que é essa sociedade distorcida.” Sintetiza alucinante e lúcido MACALÉ. Anárquico, incontrolável, santo, ergue sua voz das profundezas. Ondas sonoras perpassam sua entidade, “Macalé de Todos os Santos, como a Bahia”, assinala o próprio. Segue o ‘Movimento dos Barcos’: “É impossível levar um barco sem temporais, e suportar a vida, como um momento além do cais...”

“Para sua segurança pessoal, não diga que me viu...” Macalé repete ensinamento de Glauber Rocha



Raphael Vidigal

Publicado no Jornal "Hoje em Dia" em 19/06/2011.

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