segunda-feira, 21 de maio de 2012


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Espero vocês lá! Atualizações diárias =)

Abraços,

Raphael Vidigal

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012




O artista popular alimenta-se das carícias do público. Numa tenda de frutas, debaixo de um sol de meio dia, o menino criado no interior de Minas Gerais, vendia seu peixe.

Quando apareceu num belo dia um ilustre cliente: Jair Rodrigues era seu nome. Alto, esbelto, sensual, cantava sambas ao lado de Elis Regina na televisão, e decidiu levar aos palcos a música do menino das frutas.

Wando imediatamente estourou nas paradas de sucesso, mas à distância, assistindo embevecido ao êxito de sua composição através das repetições radiofônicas. Logo, quis conhecer ele próprio o afago do público.

Investiu-se de uma sensualidade consentida, num acordo tácito entre ele e a platéia ficaria provado que para se conseguir carinhos não eram necessárias mais do que meias palavras, cantadas ao pé do ouvido, com charme e saliência.

Wando atestou que mesmo desfeito dos traços de Jair Rodrigues, tanto corporais quanto vocais, havia possibilidade de conquista no horizonte da música brasileira. Romântico, brega, apelativo, sambista, compositor de verve confessional, Wando foi tudo isso e muito mais. Reduzido ao rótulo de ‘cantor das calcinhas’, ele se mostrou imenso em seu traquejo com o povo.



Um artista popular. Freqüente nas rodas de violão em interpretações confraternizadas de “Moça” (Eu quero me enrolar nos seus cabelos, abraçar teu corpo inteiro, morrer de amor, de amor me perder, eu quero, eu quero...), “Fogo e Paixão” (Você é luz, é raio, estrela e luar, manhã de sol, meu Iaiá, meu ioiô, você é sim, e nunca meu não, e quando tão louca me beija na boca, me ama no chão...), e outras pérolas enternecidas por refrãos igualmente envolventes. Além disso, tornou-se referência ao abordar em suas músicas questões espinhosas, como virgindade, orgasmo e homossexualidade.

Erótico nos gestos, nos murmúrios e no olhar, Wando repousa nos braços do povo que em várias camas sonha com teu repertório de frescor enluarado.

Raphael Vidigal

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011




Rude João Batista. Do Vale, donde emergem misérias amarelecidas. Que o tempo não carcomeu, pois Carcará se enganchou sobre vestes rasgadas, com olhos de furar o sol.

Profeta do norte, repentista sem pátria. Cabeça na bandeja de palha. A ema gemeu quando esqueceram teu parto. Tal retirante legou em cada canto um aviso, gemido, burburinho. Num arrasta-pé sem vergonha, com muita alegria. Nutrido à carne escassa, seca mandioca, picardia. Mas se dança e belisca numa danação arredia, pouco tímida, que lança e provoca enquanto espia. Malícia de ventre em véu, sem amarras nem covardias.

O segredo do sertanejo ninguém explica. Convide Coroné Antônio Bento e pesque uma isca. Só dando com o peba na pimenta pra suportar terra assim ardia. Sorriso bronco branco asseado. Casca escura de fina usura.

Assim pesado, fruto de todos os pesares, maldizeres, apertos, segura a pena com delicadeza e percorre com anjos nos pés a asa do vento, emaranhando-se na teia da aranha, se lambuzando com o mel da abelha.

As Pedreiras do Maranhão te criaram para o mundo. E a cachaça de todo dia, o suor escorrendo na testa, encontrando o peito de pêlos, grudaram com tanta força em teu corpo que não posso dizer se não te perderam, ou foste tu, João, que não largou da mão deles.

Dos teus irmãos, à beira do palco no teatro Opinião, distantes, repudiando as demonstrações de desafeto dos donos da panela, eximindo de culpa os que cozinham nela, pois já trazem tantas cruzes e tantas velas acesas.

Visões de um Cego Aderaldo a espalhar correntes? Talvez a sina do irmão sem berço Patativa, nos braços de Assaré? Importa como o pássaro foi capturado? Como se lhe arrancou os dentes? Ou como o coração cuspiu as entranhas? Tu és barro levado ao fogo por Mestre Vitalino, “puro”, como diz Chico Anysio. Transformação divina. “A rosa não tem porquês. Ela floresce porque floresce.” Ângelo Silésio. Porque as flores são tão bonitas jogadas ao chão e tão distantes jogadas no vento.

Fulô caída no chão precisa de pés esgarçados, estrela no céu é miúda e brilhante. Mas não iluda, João, não iluda. Tua espera é realidade. Nossa miséria, nossa fome. Que na tua morte, sejamos menos ingratos.

Raphael Vidigal

Publicado no jornal "Hoje em Dia" em 6/12/2011.

terça-feira, 1 de novembro de 2011



Cazuza foi um dos mais importantes cantores e compositores da década de 80, tendo sido um dos principais personagens do rock nacional que se instalou definitivamente na música brasileira a partir dali. Em sua obra, a representação da homossexualidade não se deu de forma linear e única, pelo contrário, Cazuza tocou de diversas formas no assunto, a maioria das vezes nas entrelinhas e através de metáforas, como era seu estilo.

Além de ter se assumido bissexual publicamente, Cazuza foi um dos compositores mais importantes na música popular brasileira na abordagem do tema, por tê-la feito de tantas maneiras tão distintas em mais de 10 canções durante a breve carreira, de 1982 a 1990.

1- Por que a gente é assim? (1984)

Primeira música gravada por Cazuza com referência à homossexualidade, em 1984. A canção é de Cazuza, Ezequiel Neves e Roberto Frejat e enfrentou resistência dos companheiros de banda de Cazuza para ser gravada por conta dos versos que remetiam à homossexualidade.



2- Narciso (1984)

Em seu terceiro disco como vocalista do Barão Vermelho e no mesmo ano que gravara sua primeira canção com referência à homossexualidade, Cazuza também gravou a segunda, que contava uma história de amor mal resolvido e trazia os versos: “nós somos iguais na alma e no corpo”. A música é de Cazuza com Roberto Frejat.

3- Só as mães são felizes (1985)

Fora do grupo Barão Vermelho, em seu primeiro disco solo Cazuza resolveu fazer uma homenagem a todo tipo de comportamento considerado marginal, maldito, e compôs com Roberto Frejat a música “Só as mães são felizes”. A homossexualidade aparece como um desses tipos de comportamento, e é representada através de uma citação debochada a uma das grandes referências literárias de Cazuza, o poeta beatnik Allen Ginsberg, ativista das causas homossexuais nos Estados Unidos.



4- Culpa de Estimação (1987)

Em mais uma canção sua em parceria com Roberto Frejat, Cazuza discursa sobre a culpa cristã que adquiriu ao longo dos anos por ter, segundo ele, sempre estudado em escolas católicas. A partir desse contexto ele refere-se à sua bissexualidade utilizando-se de nomes bíblicos, Eva e Adão, ao dizer-se indeciso entre o amor de um homem ou uma mulher.

5- Quarta-feira (1987)

O disco “Só se for a dois”, de 1987, marca o ano em que Cazuza fala de forma mais escancarada em uma música sua sobre a homossexualidade. Mesmo já tendo dito diversas vezes em entrevistas ser bissexual, apenas em 1987 Cazuza cantou sua opção de forma definitiva em uma música, através dos contundentes versos: “eu ando apaixonado por cachorros e bichas (....) porque eles sabem que amar é abanar o rabo, lamber e dar a pata”. A música é uma parceria de Cazuza e Zé Luiz.



6- Heavy Love (1987)

Ainda em 1987, Cazuza voltava a fazer referência à homossexualidade de forma implícita, enigmática, com os versos da música que continham quase que uma idéia de rebeldia e transgressão associada à homossexualidade: “pro nosso amor descarado e virado o mundo lá fora não serve pra nada.” A música foi composta por ele em parceria com Roberto Frejat.

7- Guerra civil (1988)

No disco Ideologia, de 1988, Cazuza lançou sua primeira canção que fazia referência clara à homossexualidade feminina. Em parceria com Ritchie, “Guerra civil”, continha os fortes versos: “freiras lésbicas assassinas”, revelando mais uma vez o modo transgressor com que Cazuza tratava do tema.

8- O Tempo não pára (1989)

Em janeiro de 1989, Cazuza lançou a música que marcaria definitivamente sua carreira, “O Tempo não pára”, parceria dele com Arnaldo Brandão, falava entre outras coisas, de uma visão sobre a forma como a sociedade costumava tratar os homossexuais à época, com os famosos versos: “te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro, transformam um país inteiro num puteiro, pois assim se ganha mais dinheiro”.



9- Eu quero alguém (1989)

No mesmo ano de 1989, em seu último disco em vida, “Burguesia”, Cazuza lançou “Eu quero alguém”, música em parceria com Renato Rocket que fazia referência à bissexualidade através da idéia de vestimentas que tradicionalmente identificavam o masculino e o feminino, com os inicias versos: “eu quero alguém, que use calça ou saia”.

10- Como já dizia Djavan (Dois homens apaixonados) (1989)

Também em 1989, Cazuza utilizou-se do discurso de outro compositor para se referir à homossexualidade. Adotando a frase de Djavan no título e nos versos finais da música, Cazuza, como raramente aconteceu na sua obra, dessa vez foi claro em sua referência.

11- Preconceito (1989)

Cazuza também fez referência à homossexualidade assumindo o papel de intérprete, como quando em 1989 gravou a música “Preconceito”, de Fernando Lobo e Antônio Maria e que já fora sucesso na voz de Nora Ney na década de 50, já naquele momento a música era cultuada pelos homossexuais e Nora se tornou diva entre eles. Anos mais tarde, Cazuza a regravou novamente utilizando-se de seu discurso para provocar o sentido da homossexualidade.



12- Esse cara (1989)

Em entrevistas ao longo do anos de 1988 e 1989, Cazuza, que já era bissexual assumido, dizia querer explorar mais em suas músicas seu lado mais feminino. Ao gravar a canção “Esse cara”, de Caetano Veloso, em 1989, Cazuza colocava-se como mulher e expunha sua faceta mais delicada. A música vinha no disco duplo “Burguesia”, na sequência de “Preconceito” que já fora reveladora de traço homossexual na década de 50 e agora era regravada por Cazuza. A composição das músicas na sequência conceituava o sentido homossexual presente em ambas.

13- Jovem (1990)

Cazuza também tratou do tema da homossexualidade apenas como compositor. “Jovem” foi composta por ele em parceria com Arnaldo Brandão, e gravada pelo grupo Hanói Hanói em 1990. A música trazia a idéia de que a homossexualidade era perante os olhos de alguns uma coisa nova, transgressora, moderna, além disso, a expressão usada para designá-la na música é carregada de coloquialidade e deboche, através dos versos: “você tá muito avançado, seus amigos desconfiam que você é veado”.



14- Problema Moral (1984 ou 1985)

Sem data definida, a canção “Problema Moral”, de Cazuza, Roberto Frejat e Dé”, gravada originalmente por Paulette, perdeu-se no tempo, mas seus versos permaneceram resguardados. A música discursa sobre a história de um amigo que conquista a namorada do outro, e acaba se justificando com uma irônica referência à bissexualidade, além de trazer a idéia de que ainda era preciso disfarçá-la: “mulher de amigo meu, pra mim é homem, eu transo no breu”.

15- Quero ele (1989)

A canção “Quero ele”, foi feita especialmente por Cazuza e Lobão para o espetáculo teatral “Querelle”, estrelado em 1989 pela transformista Rogéria. A música conta a história do personagem principal da peça, o marinheiro homossexual Querelle, e faz referências também à quem o interpreta, em versos contundentes: “Quero Querelle e seu irmão, Quero Rogéria e seu pauzão”.



Raphael Vidigal

Parte de projeto experimental acadêmico realizado na PUC MINAS.

domingo, 2 de outubro de 2011



Yamandu Costa: as cordas lhe desobedecem. Incautas, prontas a insolentes provocações, por incitação tutorial. Seus doze dedos se transformam em treze, quatorze, infinitamente. Amarram-se aos trilhos do violão, descarrilados em seqüência.

À deriva, no suntuoso Grande Teatro do Palácio das Artes, na última quarta-feira, o gaúcho iniciou sua expedição com bela homenagem a Raphael Rabello, um mito da arte de trovejar violões, içando as caravelas de “Samba pro Rafa”, em magistral partida.

“Nas ondas verdes do mar”, suspirou Caymmi de cadente saudade à “Mafuá”, obra de Armandinho Gomes, que dá nome ao disco. Insurgindo em intervenção divina, arriscou-se a contrariar os donos do tempo, e espalhar os raios púrpuros do seu “Choro Loco”.

Se “os piores atos são feitos para o bem, e esse é um costume do amor”, como escreve seu conterrâneo Fabrício Carpinejar, “Elodie” despeja emoções lavadas pela espuma que declina na distância. Feita em homenagem à mulher, à espera num porto distante da França, soa revigorando os perigos da ausência, e a fortaleza de pedras do amor.

Disposto a desbravar inóspitas regiões de seu instrumento, Yamandu se aventura, monta um cavalo baio, dedica o canto à avó, entoa toda a “mística de Sarará”, em suas próprias palavras. Matuto de berço, recolhido as flores alvas do jardim de sua infância sulista, tenta acalmar o coração do filho em prantos. Em vão, somente lega a suavidade de “Bem Vindo” à platéia. Dentro ao mar em dias de ressaca, que impressiona e chantageia.

Como os ancestrais venham a lhe suprir a bússola que determina águas bravias, Baden Powell surge imponente em sua estratégia de arrastar correntes e lapidar o chão do navio, com pés que batem e se desprendem, na execução afiada de “Sambeco”. Para que o cabaré se arme e os tripulantes dancem, Yamandu chacoalha a “Suíte Colombiana No. 2 – Porro”, do capitão latino-americano Gentil Montaña.

Alardeada a presença de “Ana Terra”, personagem do romance do também gaúcho Érico Veríssimo, o violonista deixa com que o vento sugira a sensação de vozes amanhecidas, e triunfe o coro de anjos no céu suspenso.

Ao toque final dos sinos que anunciam a noite, o anfitrião, na posse dos aposentos sem cerimonial, convida o encantador das Minas Gerais, Marcelo Jiran, que surge com sua flauta prateada e acompanha as divercionices (invencionices e diversões) com o seu “Choro Classudo.” Os aplausos encobrem o marinheiro, e paira sobre o deleite a poesia “rimbaudiana” liberta em mar de trôpegos sons. Yamandu toca de olhos fechados. Decifra o enigma, Tom Zé: está “iluminando pra poder cegar.”

Raphael Vidigal

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