terça-feira, 31 de agosto de 2010



“Ao soar o carrilhão dando as doze badaladas, ao se encontrarem os ponteiros na metade do dia, também os ouvintes da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, no programa Luís Vassalo, se encontram com Francisco Alves, o Rei da Voz!”
Com essas palavras, Lúcia Helena o anunciava e sua voz grave e pesada logo tomava conta de todas as casas do país. Àquela altura ele já havia sido nomeado por César de Alencar, mas antes de poder desfrutar de toda a sua realeza havia trabalhado como motorista de táxi, engraxate e operário de fábrica de chapéus. Quando lhe foi oferecido pela primeira vez um microfone a estréia se deu em um circo, cenário que jamais se repetiria depois que ele gravou duas músicas do sambista Sinhô. Dali para a frente sua vida seria repleta de glórias, dinheiro e muitos discos vendidos, ocupando sempre o lugar mais alto das paradas de sucesso, afinal de contas a coroa já era dele e o microfone há muito reverenciava-lhe. Francisco Alves foi o representante primeiro e mais importante de duas décadas que consagraram um estilo de cantar empostado e com dós de peito. Trajando ternos e smokings elegantes, carregando a voz e o violão, ele se tornou o grande fenômeno de massa da era de ouro do rádio brasileiro e foi peça fundamental na consolidação e no aprimoramento das técnicas elétricas das gravações de música no Brasil. Não houve brasão maior da música brasileira, mesmo que influenciada pelo bel-canto da ópera italiana, do que aquele que reinou absoluto nas décadas de 30 e 40, aclamado pelos radialistas e adorado por seu povo, o Rei da Voz, Francisco Alves.



“Onde o céu azul é mais azul
E uma cruz de estrelas mostra o sul
Aí, se encontra o meu país
O meu Brasil grande e tão feliz”

Levantando a voz e erguendo os pulmões para que eles alcançassem a ponta do microfone e pudessem transmitir ao público os sentimentos exacerbados da voz do rei de todas elas, Francisco Alves cantou de todo o tipo de música: marchinhas, boleros, tangos, sambas e rumbas e foi sempre idolatrado. Indo da Argentina até os morros cariocas, emprestou sua voz para jogar luz sobre sambistas como Cartola, Ismael Silva, Nilton Bastos e Noel Rosa, e usou seu dinheiro para que seu nome fosse incluído na autoria. Nesse percurso sempre em disparada e tons extremos formou uma emblemática dupla com o suave Mário Reis e compôs belas melodias para as letras do poeta Orestes Barbosa. Como em tudo que fazia, o glamour e a grandiosidade eram os estandartes principais de sua trajetória regada a ouro, bambas do samba e músicas bonitas. Francisco Alves era um rei por excelência, e o apogeu em sua história foi quase que uma constante. Ainda no auge, ele partiu para mais uma viagem no dia 27 de setembro de 1952, só que dessa vez o grande Chico Alves seria sinônimo de cinco letras que choram.



“A sorrir você me apareceu
E as flores que você me deu
Guardei no cofre da recordação”

Quando a notícia do trágico acidente que matara o Rei da Voz chegou houve comoção no país inteiro, as fãs se desesperaram e registrou-se até um suicídio. Mais uma vez arrastando uma multidão como sempre fazia, seu corpo seguiu em cortejo acompanhado por milhares de admiradores emocionados. A voz magistral se calava temporariamente, pois Chico Viola logo voltaria em sambas feitos em sua homenagem e nas rádios que continuariam tocando seu repertório mesmo após a sua partida. Alguns anos se passaram e cantores como Orlando Silva e Nelson Gonçalves viriam a dividir o lugar de destaque que por tanto tempo pertenceu somente a ele, nunca deixando de lembrar seu pioneirismo e a influência que Chico Alves ainda exercia sobre eles. Por mais tempo e cantores que tenham atravessado a história da música brasileira com igual ou superior qualidade nunca se esqueceu do legado e da importância do Rei da Voz. Enquanto esteve vivo, nenhum cantor foi tão soberano por tanto tempo como ele. Um rei escolhido por seu povo será sempre legítimo, e se a voz do povo é mesmo a voz de Deus, o Rei da Voz é aquele que merece ser sempre ouvido.
“Meus amigos e ouvintes aqui me despeço, desejando um bom domingo para todos e até o próximo se Deus quiser.”



“Na carícia de um beijo
Que ficou no desejo
Boa noite, meu grande amor!”

Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 28/08/2010.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010



As ondas verdes do mar recebem uma oferenda, uma brisa clara, uma areia espessa. Colares, correntes, patuás e pulseiras presenciam uma espuma branca correndo entre braços abertos que se erguem graciosamente e com as mãos espalmadas, uma para cima e a outra para baixo, cantam um salve aos orixás. A espuma branca que corre entre os braços colore o vestido da sereia de traços negros desfiados em sua boca vermelha, seus cabelos frondosos como os de uma árvore, seu canto mestiço e intenso. Ela agita as mãos com leveza enquanto as linhas da capoeira passam por elas tecendo a barra rodada do vestido longo e os amuletos. O canto da sereia nos leva para o fundo do mar onde encontramos conchas, flores e estrelas. Mas não morremos lá. Porque as águas do mar da sereia são as águas salgadas do mar da Bahia que como um raio de luz se dissipam nas avenidas do Rio e nos levam até as montanhas de Minas. Se vocês querem saber quem é a sereia, ela é a tal guerreira, de voz de brisa condensada, mar em oferenda, de areia Clara.



“O mar serenou quando ela pisou
Na areia
Quem samba na beira do mar
É sereia”

Entrelaçando os braços e chamando as palmas enquanto o mar banha seu corpo e a purifica, a sereia Clara Nunes junta em seu canto a força do branco colonizador que conquistou o ar através do fogo, a ternura do negro africano que aqui chegou pelos mares da Bahia e a emoção do índio que já plantava nessas terras. Sua voz é um divino manto que cobre as jarras de barro, as matas, os milharais e as mãos de mulheres lavando roupa. Mesmo quando ela está na areia é possível ver nos olhos da sereia duas gotas d’água, seu corpo veste uma espuma branca e na doçura de sua voz há o sal da Bahia, a bandeira azul e branca da sua Portela no Rio e as cachoeiras de Minas. Com as mãos para o céu e os pés no chão ela pisa no terreiro de sua fé e lança seu olhar sempre adiante, sua presença sempre à frente, sua expressão serena que conheceu as três raças e encantou o Brasil.



“Seu brilho parece um sol derramado
Um céu prateado, um mar de estrelas
Revela a leveza de um povo sofrido
De rara beleza que vive cantando profunda grandeza”

Enquanto o coro do samba lhe monta um altar, a sereia do mar de Minas faz evocar a mata, o povo, a prata, o céu do sabiá e as forças da natureza. Clara Nunes acende velas, meche os chocalhos, leva fé para os corações que batucam samba e se banham em manjericão. Espalha alegria da Bahia a Minas, passando pela Portela. Rodando seu vestido longo e branco, Clara segue o ritmo da morena de Angola com sua voz brasileira de profissão esperança. Uma voz que traz o ouro de Minas banhado pelo mar salgado da Bahia e acompanha um sorriso espontâneo coroado por flores e conchas que lhe enfeitam os cabelos. Um brilho mestiço que se encontra nos olhos, no sorriso e no canto místico de Clara Nunes. No folclore da sereia brasileira que iluminou as minas de ouro dos corações marejados.



“Morena de Angola que leva o chocalho
Amarrado na canela
Será que ela mexe o chocalho
Ou o chocalho é que mexe com ela?”

Raphael Vidigal Aroeira

domingo, 8 de agosto de 2010




Deitado em uma rede branca que se balança entre os cocos da praia e as tiras do Diário de Notícias que ele precisa entregar, Oscar da Penha sente o sol abafado que a vida traz. Quando ele lhe dá um descanso e lhe oferece uma pequena sombra perto do mar, Oscar caminha até o encontro de Antônio Maria e lhe apresenta seu primeiro samba. Desse encontro nasce seu apelido que o tornaria conhecido de bambas da Bahia como Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gilberto Gil e outros um pouco mais distantes como Chico Buarque, Jair Rodrigues, Paulinho da Viola e Jamelão. Ele que tinha começado imitando outro crioulo conhecido como Vassourinha finalmente tinha a chance de mostrar ao mundo as contradições do amor. As contradições da vida. Ele que por muito tempo caminhou sob sol a pino sem chance de nenhuma água, e por isso bebia a que ele próprio produzia e que recebia diretamente de seus olhos salgados e sensíveis. Olhos que eram enxugados por toalhas da saudade e que já eram diplomados em matéria de sofrer. Quando na Bahia se produzia um samba batata, com uma poesia requintada e triste, era de Batatinha!



“Tenho ainda guardada
Como lembrança do carnaval que passou
Uma toalha bordada, que na escola de samba
Um lindo rosto enxugou”

Tens o sorriso abatido e os olhos marejados Batatinha. Aqueles olhos caídos de quem sabe que o sofrimento é um costume e a felicidade passageira como o carnaval. Mas o mar da Bahia bate seu sofrimento na areia, ele se arrebenta e se transforma em mais grãos de areia. Na imensidão branca de frente para o mar ou em cima de sua cabeça percebemos a diferença. A areia é branca, seus cabelos são brancos, mas sua pele é negra e seu coração sofrido tem a cor da poesia mais bonita: uma cor sem distinção, uma cor indefinida, uma cor que é somente sentida.



“O que é que eu posso fazer
Se a esperança não quer se afastar do meu peito
Se a consciência me diz
Que o meu direito é ser feliz”

A tristeza arrastada de Batatinha e sua voz resignada pela dor de sua poesia carregavam em cada fio de cabelo branco que ele trazia na cabeça um fio de esperança que o conduzia pelas estradas de areia da sua Bahia. Batatinha lutou para ser reconhecido como compositor e para ser reconhecido pelo amor. Casou-se com Marta e teve nove filhos, mas continuava sofrendo das dores que não avisam a hora de partida. Foi gravado pelos maiores nomes da música brasileira, implementou elementos da capoeira no samba de raiz, inventou o samba-receita e foi elogiado por grandes críticos, mas continuava desconhecido e só conseguiu gravar dois discos em vida. Aquele negro terno de canto vagaroso e preguiça singela seguiu fazendo seu samba com pureza e nostalgia, e hoje somos nós que os temos: o samba de Batatinha e a nossa nostalgia.



"Se eu deixar de sofrer
Como é que vai ser
Para me acostumar?"

Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 8/08/2010.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010




A cortina do teatro se abre e o homem com voz feminina e pose libidinosa contorna de preto os olhos e pisa firme no palco, pinta de vermelho a boca e aguça os ouvidos para sentir os sons que emergem de seu corpo quase nu. Uma flor vermelha se espreguiça na orelha e ruma para lançar seu perfume por entre os dentes separados desse mago sensual e aflito. O batom vermelho beija bandidamente o público com seus agudos que dançam acompanhando os quadris e as batidas do peito. Colares de pérolas, brilhantes e badulaques completam o espetáculo. O mago se transforma em peixe, em água viva, em pássaro, em lobisomem. Se transforma num pescador de pérolas. As correntes do homem libertário enfeitam seu corpo mas não impedem seus movimentos. No palco ele está livre, pula, dança, flerta com milhares de rostos ao mesmo tempo e canta. Canta com sua voz encantada que nenhuma força jamais impediu. Porque não há força capaz de impedir o canto de Ney Matogrosso. Dentro dele há um bicho, uma mulher, um canto imprevisível e sedutor que rebola lascivamente dentro do imaginário e do corpo da música brasileira.



“Esse corpo moreno
Cheiroso e gostoso
Que você tem
É um corpo delgado
Da cor do pecado
Que faz tão bem”

Investido por sua postura de bicho-homem Ney Matogrosso libera seus instintos mais provocantes e crava a língua no ouvido do público. Por todos os lados uma espiral de cores o circunda e faz prevalecer o feitiço dourado do amarelo de seu corpo e o vermelho fogo que lateja em seu rosto. Com uma venda preta cobrindo seus olhos Ney realiza fantasias de todas as espécies e se despe em cena ao revelar seus desejos mais secos e mais molhados. Ney Matogrosso é um artista destemido, atrevido, dançante, capaz de unir o homem e a mulher em seu canto. Um artista que ao se despir em público faz do palco o teatro de sua vida.



“Nunca vi rastro de cobra
Nem couro de lobisomem
Se correr o bicho pega
Se ficar o bicho come”

Com o sangue latino em brasas e anéis brilhantes que lhe veneram os dedos, Ney Matogrosso penetra o olhar sobre a platéia, domina a voz e o palco com seus agudos rasgados e volumosos e se entrega aos sentimentos e às sensações fazendo muita cena, usando e abusando de seu talento performático, seu figurino exótico e sua voz mágica. Adepto convicto da exuberância e da fartura Ney Matogrosso revigora seus sentidos com a vitalidade de um homem bicho mulher de quase 70 anos de experiências e liberdades e estimula os pecados da gula e da luxúria ao brindar a música brasileira com sua arte exuberante e ousada.



"Sou um homem, sou um bicho, sou uma mulher
Sou a mesa e as cadeiras desse cabaré
Sou o seu amor profundo, sou o seu lugar no mundo"

Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 01/08/2010.

Copyright 2010 A Força Que Nunca Seca *Template e layout layla*