segunda-feira, 27 de setembro de 2010



Por trás da expressão carrancuda, do semblante de poucos amigos e da barba que escondia-lhe a chance de um sorriso mais largo, havia um coração pronto a explodir do menino que desceu o São Carlos para colocar o dedo na ferida dos problemas sociais e afetivos de mulheres e homens. Filho do Rei do Baião, da dançarina Odaléia e da música brasileira que acolheu com tamanha propriedade, a cara de Gonzaguinha era a de um Brasil que não se entrega e não deixa de apontar as mazelas que atingem as suas pessoas. Com a camisa aberta e o peito à mostra ele escreveu através de suas músicas um retrato sensível, por vezes raivoso, outras vezes irônico, de sentimentos universais e em decadência. Era um grito de alerta, e ao mesmo tempo, de esperança.



Filho de vários pais e de várias mães, Gonzaguinha teve história parecida com a de muitos brasileiros. Nasceu no ventre da cantora e dançarina da noite Odaléia e foi registrado pelo expoente maior da música nordestina levando seu nome. Com a morte da mãe quando ele tinha dois anos, vítima de uma tuberculose, Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior foi entregue aos carinhos de dona Dina e seu Xavier, para que o pai pudesse cumprir sua vida de viajante. Luizinho, como passou a ser chamado no morro de São Carlos, no Rio de Janeiro, logo aprendeu a tocar violão com seu padrinho, a sacar as malícias das ruas, e a ter vontade de conhecer outras bandas. Essa epopéia comum a tantos brasileiros, Gonzaguinha cantou “Com a perna no mundo”, de 1979, em que deixava um caloroso recado à madrinha querida: “Diz lá pra Dina que eu volto, que seu guri não fugiu, só quis saber como é, qual é, perna no mundo, sumiu...”

Espere por mim, morena

Moleque arisco e interessado em conhecer o mundo, Gonzaguinha decidiu aos 16 anos que queria cursar economia. Como os padrinhos Dina e Xavier, conhecido como Baiano do Violão, não tinham condições de pagar seus estudos, o menino resolveu por conta própria que iria morar com o pai. Depois de um começo de relação atribulada, com Gonzaguinha desentendendo-se constantemente com a madrasta e Luiz Gonzaga por conta de posições ideológicas, os ânimos se acalmaram, e a convivência entre os dois foi aos poucos melhorando. Gonzaguinha foi matriculado em um colégio interno e conseguiu concluir o curso que tanto queria. Mas a herança que pulsava em suas veias era a da música. Em 1967, seu pai gravou pela primeira vez uma composição sua: “From United States of Piauí”, canção bem humorada e crítica acerca dos americanismos na língua portuguesa. Mas somente em 1976, ele assumiria de vez as influências e a importância do pai em sua trajetória. No disco intitulado “Começaria Tudo Outra Vez”, gravou “Asa Branca”, um dos maiores sucessos de Luiz Gonzaga, e a toada “Espere por mim, morena”, grande êxito popular que trazia à tona o lado romântico e saudoso de um Gonzaguinha doce e leve, que falava de rede, cobertor e sol.



Grito de Alerta

No ambiente universitário, Gonzaguinha passou a ter contato com Ivan Lins, Aldir Blanc, César Costa Filho e outros, com quem formou o Movimento Artístico Universitário, conhecido como MAU. O grupo se reunia com freqüência na casa do psiquiatra Aluízio Porto Carreiro para longas conversas e rodas de violão. Passaram então a participar de festivais, e no ano em que foi vencedor com a canção “O Trem (Você se lembra daquela nêga maluca que desfilou nua pelas ruas de Madureira?)”, Gonzaguinha recebeu uma das maiores vaias de sua carreira. Apenas em 1973, ele conheceu o sucesso. Ao entoar “Comportamento Geral” no programa de Flávio Cavalcanti, Gonzaguinha chocou os jurados, esgotou o disco nas prateleiras e foi censurado pela ditadura. Além do espírito combativo, as reuniões na casa de Aluízio, renderam-lhe seu primeiro casamento, com Ângela Porto, mãe de seus dois primeiros filhos. O discurso do embate político cedia espaço em 1980 para um envolvente Gonzaguinha, que acostumado a ouvir na infância Jamelão, Lupicínio Rodrigues e músicas portuguesas, entregava para Maria Bethânia consagrar um samba-canção de sua autoria, em que discutia as difíceis questões do coração. Deixando de lado a razão, “Grito de Alerta” era uma tentativa sincera de se desapegar de questões menores e amar de portas abertas.



Guerreiro Menino


Gonzaguinha sempre foi considerado um artista de temperamento difícil, não gostava de dar autógrafos e raramente compunha com outros parceiros. Tido por muitos como mal humorado e arrogante, era na verdade um sujeito provocador, despojado, como ele próprio definia: “um grande gozador”, um moleque levado e teimoso que gostava de descumprir ordens. No entanto, o comportamento arredio e a desconfiança que lhe marcavam eram atribuídas por muitos aos conflitos que teve com Luiz Gonzaga. As diferenças entre os dois acabariam se tornando lá na frente o elo perfeito para formar uma parceria entre o sambista do morro carioca e o nordestino que inventou o baião, o destino de ambos cruzando o país, Gonzagão e Gonzaguinha. Já bem à vontade para tratar de temas mais sentimentais, Gonzaguinha teve gravada na voz de outro nordestino uma de suas músicas que continham maior ternura. Em 1983, seu compadre Fagner recebeu de Mariozinho Rocha o aviso de que Gonzaguinha havia lhe mandado uma música. O detalhe é que o empresário considerava que ela tinha sido feita “nas coxas” e não valia a pena gravá-la. Fagner insistiu, chorou de emoção ao ouvi-la e a transformou no carro-chefe do seu LP daquele ano. “Um homem também chora” delineava com maciez sensações singelas e muito humanas, habituadas a se esconderem atrás de hipocrisias. Gonzaguinha falava sem deixar passar nenhuma farpa da criança que constrói e existe em cada homem, da faceta mais frágil e carinhosa dos guerreiros meninos. E ele era um deles.



Sangrando, Explode Coração E Vamos à luta

No início da década de 80, Gonzaguinha passou a morar em Belo Horizonte com sua segunda esposa, Lelete. Desse casamento nasceu a sua caçulinha, Mariana, irmã de Daniel, Fernanda e Amora, filha do relacionamento do cantor com a Frenética Sandra Pêra. Nessa época, ele vivia sua melhor fase e já desfrutava dos sucessos de “Ponto de Interrogação”, “Grito de Alerta” e “Sangrando”. A balada imortalizada por Simone revelava um desenho auto-biográfico e pungente do compositor que não se dizia cantor, mas intérprete de suas emoções. Na letra de “Sangrando”, o intérprete se rendia por inteiro. Começava soltando a voz com um delicado pedido, para depois consentir que a música se apoderasse dele e exprimisse a vida em sua plenitude.

Contestador por natureza, em 1975 Gonzaguinha havia dispensado seus empresários para fundar depois seu próprio selo, Moleque, que também seria o nome do seu álbum de 1977. Nesse ano, “Explode Coração” tornou-se um dos maiores marcos de toda a carreira de Maria Bethânia. Intitulada inicialmente “Não dá mais pra segurar”, a música é um desabafo lento, progressivo, um exercício de confissão e entrega em que o compositor se despe de seus medos e aceita todos os desejos. Em “Explode Coração”, Gonzaguinha se descortina para que a vida entre sem pedir licença.



Durante a sua trajetória, Gonzaguinha conviveu com a pobreza na favela, problemas de saúde como as duas tuberculoses que teve, e a falta de liberdade imposta pela ditadura. Apesar disso, deu um jeito de driblar as armadilhas para conquistar o que achava que tinha direito. “E vamos à luta” é talvez o samba mais animado, emblemático e contagiante de sua obra. A música é um recado otimista de persistência e coragem direcionado aos brasileiros que batalham seu lugar ao sol diariamente, com espaço para uma fezinha especial na juventude. Através dos versos esfuziantes da canção, Gonzaguinha cultiva as delícias da união e do sonho. Gravada por ele em 1980, a música foi apresentada depois em duetos descontraídos com Alcione e Roberto Ribeiro.

Começaria tudo outra vez

Ao som de bolero, samba, baião ou toada. Assim Gonzaguinha escreveu seu nome na canção brasileira. Um nome que já tinha peso antes mesmo dele nascer, e que foi aos poucos penetrando nos ouvidos das pessoas com aquele diminutivo. O menino esguio que falava de dramas, amores e problemas sociais, cresceu e continuou menino. Continuou falando, cantando, observando aquilo que lhe tocava com o cuidado de quem enxerga uma fruta madura no pé da árvore. Gonzaguinha no palco era solto, espontâneo, como se estivesse em casa, mas quando escrevia era incisivo, agudo, enfático, dando a medida que lhe cabia da força dos relacionamentos humanos em sua vida. Não imaginava ele que em 1976, só estava no começo, mas ainda assim decidia: “Começaria tudo outra vez, se preciso fosse, meu amor...”

"Só quero ver as pessoas assoviando as minhas músicas" Gonzaguinha



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 26/09/2010.


Ismael Silva é considerado por Chico Buarque seu “verdadeiro pai musical”. O sambista nascido em Niterói, no Rio de Janeiro, no dia 14 de setembro de 1905, foi um dos fundadores da primeira escola de samba, no final da década de 20, a qual deu o nome de Deixa Falar. Tido por Vinicius de Moraes como um dos três maiores sambistas de todos os tempos, Ismael tem em seu currículo o nome de músicos famosos como parceiros, destacando-se entre todos eles Noel Rosa e Lamartine Babo. Descoberto por Francisco Alves em 1927, o inventor do samba carioca como se conhece hoje é o autor de várias canções célebres do nosso cancioneiro, entre elas “Se você jurar”, em parceria com Nilton Bastos, “Adeus”, parceria com Noel Rosa e “Antonico”, um de seus últimos sucessos. Depois de ser regravado por artistas como Beth Carvalho, Clara Nunes e Cristina Buarque nos últimos anos de sua vida, Ismael Silva morreu no dia 14 de março de 1978, aos 72 anos, e para sempre será lembrado como um dos grandes nomes da música brasileira. Se estivesse vivo, ele completaria 105 anos nesse mês de setembro.

Antonico

Composto em 1950 por Ismael Silva, o samba “Antonico” foi registrado por ele próprio em disco em 1973, fruto do espetáculo “Se você jurar”, dirigido por Ricardo Cravo Albin. Em 1967, Elza Soares já o havia gravado no disco “Elza, Miltinho e Samba”, em que cantava algumas músicas ao lado do cantor Miltinho. Apesar das constantes negativas de Ismael, especula-se que a música seja autobiográfica, devido às dificuldades financeiras que o compositor passou após sair da prisão. Em uma carta escrita por Pixinguinha em 1939, endereçada ao musicólogo Mozart de Araújo, ele dizia: “Espero que o que puder fazer pelo Ismael seja como se fosse por mim.” Quase os mesmos versos presentes no samba “Antonico”.



Se você jurar

O samba “Se você jurar”, composto em 1931, tornou-se uma das músicas mais conhecidas do repertório de Ismael Silva. Grande sucesso no carnaval daquele ano, cantada pela dupla Mário Reis e Francisco Alves, “Se você jurar” recebeu diversas regravações, entre elas as de Beth Carvalho, João Bosco e Casuarina. Além disso, alimentou-se por muito tempo uma polêmica sobre a autoria da canção. Orestes Barbosa e Mário Reis afirmavam que ela era apenas de Nilton Bastos, Francisco Alves dizia que era dele e de Nilton, e Ismael Silva garantia que a compusera ao lado de Nilton.

Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 26/09/2010.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010


Na primeira quarta-feira do mês de agosto desse ano, a cantora Leny Eversong, dona de uma das mais potentes vozes que o Brasil já teve, teria completado 90 anos de idade.
Leny, que nasceu Hilda Campos Soares da Silva, começou a carreira aos 12 anos, cantando no programa “A Hora Infantil”, na Rádio Clube de Santos, cidade onde nasceu. Demonstrando desde o início seu enorme talento para interpretar foxes estrangeiros, Leny logo passou a ser chamada de Hildinha, a Princesa do Fox. Pouco tempo depois, ela deixaria para trás o nome em português, mas não abandonaria as canções estrangeiras, passando a se especializar também em outros ritmos, como jazz, bolero e blues. Ela, que não falava nada em inglês, anotava na mão a pronúncia das palavras e era proibida por seu empresário de dar entrevistas fora do Brasil, arriscando no máximo alguns “all right´s” e “ok´s”.



A partir da metade da década de 50, Leny passou a receber convites frequentes para se apresentar anualmente em Las Vegas e fazer shows pela Europa, já que a essa altura também cantava (e muito bem) em outras línguas, como italiano, espanhol e francês, e tudo isso sem saber falar o idioma.
Apesar da enorme fama da qual já desfrutava no exterior, Leny nunca obteve no Brasil o reconhecimento que lhe era devido, e gravou poucas vezes em português, numa dessas tendo feito registros históricos de músicas que seriam sucesso mais tarde na voz de Elis Regina, a exemplo de “Aleluia”, de Edu Lobo e Ruy Guerra, e “Arrastão”, a música que lançou Elis no Festival da Canção, também de Edu Lobo e Vinicius de Moraes.



No início da década de 70, quando seu marido desapareceu supostamente seqüestrado por traficantes que o confundiram com seu filho (mais tarde ele seria preso acusado de envolvimento com drogas), Leny não quis saber mais de música e se refugiou por um tempo na casa do amigo e cantor Agnaldo Rayol. Conhecida por sua figura gorda e loura e sua voz que alcançava tons extremos, Leny ficou deprimida, teve diabetes e raramente apareceu em alguns programas televisivos. Nunca mais gravou um disco. Aquela figura alegre, expansiva, que falava alto e comia muito já não existia mais.
No dia 29 de abril de 1984, pouco tempo depois de ter as duas pernas amputadas, Leny morreu aos 63 anos, e sua voz desapareceu definitivamente.
Entre seus maiores sucessos estão Jezebel, gravada por ela em 1956 e Summertime e St Louis Blues, sucessos em inglês gravados em 1957. Além disso, foi responsável por lançar o cantor Juca Chaves, ao gravar uma música sua quando ele tinha então 16 anos, e ajudou Cauby Peixoto no início da carreira.
Hoje em dia, ainda é possível encontrar seus discos sendo vendidos pela internet por preços que variam entre R$80 e R$150, e em 2007, o jornalista e produtor musical Rodrigo Faour, lançou uma coletânea de Leny Eversong através da série Grandes Vozes, editada pela Som Livre.
Leny Eversong tornou-se artigo de colecionador, raridade, mas sua voz poderosa, afinada e límpida é a prova maior do valor de uma cantora de inquestionável qualidade.



(Matéria publicada no jornal "Hoje em Dia")

Raphael Vidigal Aroeira

segunda-feira, 20 de setembro de 2010



Subindo as ruas íngremes de Bento Ribeiro, José Flores de Jesus lembra-se da sua adolescência, quando morava no subúrbio de Piedade, e de sua infância, que passara em Inhaúma, redutos conhecidos da malandragem do Rio de Janeiro. Ao passar pelas ruas do atual bairro, José Flores enxerga velas acesas, máscaras negras e pede licença para cantar o seu amor. Quando ele finalmente chega à roda de samba para a qual caminha, nem precisa se apresentar, todos já sabem que aquele sujeito de chapéu de aba pequena na cabeça, caixinha de fósforos na mão e andar sambado é o Zé Quietinho filho da dona Leonor, ou o Zé Kéti da Portela que hoje todos conhecem: a voz do morro, da opinião, da prece de esperança e do poema de botequim.



Neto do flautista e pianista João Dionísio Santana, o primeiro instrumento que Zé Quietinho tocou foi uma flautinha dada por sua mãe. Dali para as reuniões na casa do avô na companhia de Pixinguinha, Cândido das Neves, o Índio, e outros, o menino que era quieto foi se interessando cada vez mais pela música e compôs um choro para o qual deu o nome de “Remelexo”. Então em 1955, ele viu estourar na boca do povo o seu primeiro sucesso: A voz do morro, samba que exaltava o próprio como porta-estandarte da favela. Gravado por Jorge Goulart com arranjo do maestro Radamés Gnatalli, a música fez parte da trilha sonora do filme Rio 40 Graus, marco do cinema nacional dirigido por Nelson Pereira dos Santos, e rendeu ao menino Zé Quieto a sua primeira oportunidade como ator. Na pele de Neguinho ele dialogava com o malandro interpretado por Jece Valadão. Estava fazendo nada mais do que interpretar a si mesmo, e dar voz a seu povo sofrido com seu balanço de cronista esperto. Zé Kéti era o rei dos terreiros.

Diz que fui por aí

Depois de algumas voltas, em 1963 a música de Zé Kéti tornou-se conjunto musical. A Voz do Morro contava em sua formação com bambas do peso de Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Anescarzinho do Salgueiro, Nelson Sargento, Oscar Bigode, José da Cruz e Paulo César Batista de Faria, a quem Zé Kéti rebatizou de Paulinho da Viola. No mesmo ano, ele recebeu o convite para ser diretor artístico do Zicartola, com dona Zica na cozinha e Cartola no violão. Trazidos por Zé Kéti, a casa recebia artistas e atraía intelectuais da zona sul do Rio de Janeiro. Até que um dia chegou por lá Carlinhos Lyra, diretor da UNE e um dos integrantes do que viria a se chamar de bossa nova. Seria esse Carlinhos que apresentaria a Zé Kéti uma moça chamada Nara Leão, que era cantora e que gravaria em seu LP de estréia, com acompanhamento do violonista Geraldo Vespar, o samba “Diz que fui por aí”, no ano de 1964. A ditadura se instalava no Brasil enquanto o morro se unia à bossa nova da zona sul através da música e da boemia. Anos depois, a canção seria sucesso também nas vozes de Jair Rodrigues, Elis Regina e MPB-4, dentre vários outros que a regravaram.




Opinião


A união entre Zé Kéti e Nara Leão, que começara com a gravação daquela música sobre as andanças de um boêmio, se estenderia até os palcos de teatro sob o nome de “Opinião”. A música composta por Zé Kéti sobre o processo de remoção de favelas que era executado pelo governo da Guanabara, seria o mote perfeito para que no final de 1964 os artistas pudessem dar o seu primeiro grito de liberdade silenciada. E foi também no ambiente do Zicartola, onde segundo Zé Kéti os compositores podiam cantar à vontade, que surgiu a idéia do musical. Escrito por Paulo Pontes, Ferreira Gullar, Armando Costa e Oduvaldo Viana Filho, e contando com a direção de Augusto Boal, “Opinião” tornou-se um dos espetáculos mais bem sucedidos do teatro brasileiro, e consagrou definitivamente o sambista e poeta do seu povo Zé Kéti, que interpretava mais uma vez o malandro dos morros cariocas, e atuava ainda ao lado de Nara Leão no papel da mocinha da zona sul e João do Vale, representado a força do nordeste. O espetáculo encenado no Teatro de Arena, em Copacabana, e que depois daria nome a um famoso grupo de teatro de São Paulo, ficou mais de um ano em cartaz. Como já era comum na carreira de Zé Kéti, sua composição extrapolava as raízes da música, e tornava-se além de um emblemático espetáculo teatral, o nome de um jornal, de um teatro, um grupo de teatro e do segundo LP de Nara Leão. Era inclusive em uma de suas falas no Show Opinião que Zé Kéti explicava que adotara o K em seu nome por ser a inicial de estadistas da época, a exemplo de Kennedy e Kubitscheck, simbolizando mais uma vez o forte caráter político da Opinião. Apanhando ou não, Zé Kéti era um sambista livre, que dialogava com todas as formas de música que surgiam no país da censura.



Acender as velas

Depois de desfrutar do enorme sucesso de Opinião, Zé Kéti voltava-se novamente para o sofrimento do seu povo, e acendia velas contra o descaso que atingia crianças que morriam diariamente na sua favela. A amiga Nara Leão seria quem a gravaria primeiro, seguida depois com o mesmo sucesso por Elis Regina e Jair Rodrigues. No ano em que denunciava a tristeza que assaltava os morros, Zé Kéti era premiado com o troféu Euterpe, como melhor compositor carioca, e dividiria com Nelson Cavaquinho o posto de melhor compositor brasileiro, recebendo o troféu O Guarany. Também nesse ano, o conjunto que ele idealizara como A Voz do Morro, gravava o seu primeiro LP, através da Musidisc. Era o compositor sendo festejado e realizando vários sonhos no ano em que cantava o lado mais triste da favela, que via seu povo morrer sem querer morrer, iluminado apenas pela luz de velas.



Máscara Negra

Máscara negra foi o grande sucesso do carnaval de 1967. A marcha composta por Zé Kéti se tornaria uma das grandes músicas cantadas por Dalva de Oliveira, e um dos últimos êxitos populares de ambos. Vencedora do carnaval daquele ano, a canção contava a antiga história dos laços amorosos entre Pierrôt, Colombina e Arlequim. A diferença é que nos versos de Zé Kéti a história ganhava contornos líricos e suaves, aproveitando-se do grande talento do compositor. Além disso, Zé Kéti corrigia um erro histórico e dava nova chance a Pierrôt, fazendo com que Arlequim fosse o rejeitado dessa vez. Máscara negra é uma das mais belas músicas de carnaval já escritas, provando toda a essência poética do trabalho de Zé Kéti, que jamais mascarou os problemas do seu povo, mas também não deixou de iluminá-los com seus sambas e suas atuações.

Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 19/09/2010.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010




Em meio à lona de um circo aos pedaços, o cantor entra, começa a cantar e é sumariamente vaiado. Recebido com apupos e desaforos, uma flor que cai sobre seus pés lhe serve como consolo. Quando ele então percebe que quem atirou a flor foi sua amada, os dois logo se casam e ele promete trazer-lhe, como prova de seu amor, o coração de sua mãe. No entanto quando ele volta, já com o coração na mão, sangrando e com a perna partida, sua amada havia fugido com outro e deixara consigo apenas uma pequenina boneca de carne: sua filha, que passa a ser a única razão da sua vida e o único motivo que lhe resta para cantar, o que se desfaz quando Deus a leva para a eternidade. Ele então se entrega à bebida e os outros que passam em frente ao bar, ao vê-lo chamam-lhe: “Ébrio, Ébrio.” Essas cenas de tragédias repetidas nunca aconteceram na vida de Vicente Celestino, mas ele as adorava, e por muitas vezes as viveu com o coração na mão, dentro das telas do cinema ou em cima dos palcos de teatro, chopes e rádios. Vicente Celestino, aquela voz de tenor atravessando o corpo sofrido daquele pequeno descendente de italianos e a alma passional dos brasileiros que o adoravam: “A Voz Orgulho do Brasil!”



“Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer
Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou
Apedrejado pelas ruas vivo a sofrer
Não tenho lar e nem parentes, tudo terminou”

Ao contrário do que propagava aos borbotões com seu canto de trato lírico e suas letras que falavam de desamores, Vicente Celestino sempre gozou de enorme sucesso junto ao público e viveu casado com a também cantora, atriz e cineasta Gilda de Abreu por 35 anos. Desde que começara a cantar na tenra idade de oito anos e o tenor italiano Enrico Caruso quis levá-lo para a Itália que o público já ficava embevecido, encantado, dedicando os píncaros da glória a Vicente Celestino, que derramava com abundância sua voz grave e extremada e era aplaudido de pé por vários minutos seguidos. Aliando sua voz possante a uma interpretação dramática e arrebatadora, Vicente Celestino se tornou sem dúvida um dos maiores nomes da música popular brasileira, tendo cantado durante 65 anos de sua vida, sempre recebido com aplausos e homenagens. Em sua voz, muitas frases tornaram-se célebres, como por exemplo a que encerrava de maneira certeira o filme O Ébrio, onde ele arrematava: “Eu disse que perdoava, mas não disse que me reconciliava.”



“Ontem, ao luar
Nós dois em plena solidão
Tu me perguntaste o que era a dor
De uma paixão
Nada respondi
Calmo assim fiquei
Mas, fitando o azul do azul do céu
A lua azul eu te mostrei”

Já aos 74 anos, Vicente Celestino viveria ainda seu último momento de glória, coroando uma carreira onde o carinho e o reconhecimento do público estiveram sempre presentes. Em 1968, Caetano Veloso gravaria uma nova versão de sua música “Coração Materno”, simbolizando a antropofagia do Movimento Tropicalista que revolucionava as concepções pré-estabelecidas da música brasileira. A repercussão seria estrondosa, como tudo que sempre cercou a carreira de Celestino, e ele seria convidado para uma homenagem televisiva feita pelos integrantes da Tropicália, no dia 23 de agosto de 1968. No entanto, Celestino se despediria antes, para pela primeira vez receber os aplausos do público sem que fosse preciso cantar. Arte que ele desenvolveu tão bem por mais de quatro décadas.



“Disse um campônio à sua amada: "Minha idolatrada, diga o que quer
Por ti vou matar, vou roubar, embora tristezas me causes mulher
Provar quero eu que te quero, venero teus olhos, teu corpo, e teu ser
Mas diga, tua ordem espero, por ti não importa matar ou morrer"

Raphael Vidigal Aroeira

domingo, 12 de setembro de 2010



Quando nasceu aquele José na Paraíba, os traços nordestinos já prenunciavam que ele seria miudinho, de cabeça chata e pele morena, mas não prenunciavam que aquele José Gomes Filho se transformaria no Rei do Ritmo. Um pouquinho que ele cresceu, a cabeça achatou mais ainda e a pele escureceu devido ao sol que lhe queimava todos os dias e já começaram a chamá-lo de Jack, herói do cinema mudo americano que desembarcava no faroeste da Paraíba. A mãe não gostou nada daquela história, e enquanto cantava uns cocos aproveitava também para lhe bater e lhe passar aquele sermão: “Mas é danado mesmo, batizar um filho com nome de José e ver trocarem o nome assim pra Jack.” Mas não adiantou, foi só ele começar a se vestir com chapéu coco na cabeça achatada, inventar um caprichado bigodinho fino e segurar com mãos maliciosas o pandeiro, que lhe batizaram pela terceira e definitiva vez: Jackson do Pandeiro, rei de Alagoa Grande, rei da Paraíba, rei do ritmo do Brasil.



“Vixe como tem Zé
Zé de baixo, Zé de riba
Desconjuro com tanto Zé
Como tem Zé lá na Paraíba”

Ainda quando era chamado de Jack do Pandeiro, aquele paraibano miudinho do interior do estado rumou em direção à capital João Pessoa para formar com Rosil Cavalcanti a dupla “Café com Leite”, onde ele tocava violão e Rosil tocava pandeiro. Depois de um ano, Rosil foi para Recife e mais tarde para Campina Grande, onde tornaria-se famoso radialista e comandaria o programa “Forró do Zé Lagoa”. Jack também foi para Recife, e lá começou a trabalhar na Rádio Jornal do Comércio e a ser chamado pela primeira vez de Jackson do Pandeiro. Seria com este nome que ele cantaria os grandes sucessos da sua carreira, como “Sebastiana”, “Chiclete com banana”, “O canto da ema”, “Forró em limoeiro”, entre tantos outros, chegando a vender mais de 50 mil cópias em seu primeiro disco, gravado quando ele já tinha 35 anos de idade. Seria também com este nome que ele conheceria Almira Castilho, com quem trocaria alianças, declarações de amor, muita música e umbigadas em cima do palco.



“Que diferença da mulher o home tem?
Espera aí que eu vou dizer, meu bem
É que o home tem cabelo no peito
Tem o queixo cabeludo e a mulher não tem”

Inventivo e criando jeitos ágeis e novos de cantar as músicas, dividindo as palavras como só ele sabia, Jackson logo tornou-se sucesso no país inteiro.
Sua voz enjoada, seu pandeiro atrevido e sua malemolência que ele empregava como ninguém na forma de cantar todos os ritmos tornaram-se marca registrada e serviram de influência para cantores como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Gal Costa, Elba Ramalho e muitos outros que gravaram seus sucessos e lhe fizeram homenagens. Jackson do Pandeiro cantava de tudo e tocava pandeiro com a maestria de malandro nordestino que só ele tinha. Como ele dizia: “E sempre cantando. Cantando samba, cantando marcha de arrasta-pé, cantando coco, essa coisa toda.” Jackson do Pandeiro é essa coisa toda, esse Brasil inteiro, esse pandeiro que escorrega na mão, mas não perde sua majestade.



“Eu só boto be-bop no meu samba
Quando o Tio Sam tocar um tamborim
Quando ele pegar no pandeiro e no zabumba
Quando ele aprender que o samba não é rumba
Aí eu vou misturar Miami com Copacabana
Chiclete eu misturo com banana
E o meu samba vai ficar assim”

Raphael Vidigal Aroeira

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