segunda-feira, 27 de setembro de 2010



Por trás da expressão carrancuda, do semblante de poucos amigos e da barba que escondia-lhe a chance de um sorriso mais largo, havia um coração pronto a explodir do menino que desceu o São Carlos para colocar o dedo na ferida dos problemas sociais e afetivos de mulheres e homens. Filho do Rei do Baião, da dançarina Odaléia e da música brasileira que acolheu com tamanha propriedade, a cara de Gonzaguinha era a de um Brasil que não se entrega e não deixa de apontar as mazelas que atingem as suas pessoas. Com a camisa aberta e o peito à mostra ele escreveu através de suas músicas um retrato sensível, por vezes raivoso, outras vezes irônico, de sentimentos universais e em decadência. Era um grito de alerta, e ao mesmo tempo, de esperança.



Filho de vários pais e de várias mães, Gonzaguinha teve história parecida com a de muitos brasileiros. Nasceu no ventre da cantora e dançarina da noite Odaléia e foi registrado pelo expoente maior da música nordestina levando seu nome. Com a morte da mãe quando ele tinha dois anos, vítima de uma tuberculose, Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior foi entregue aos carinhos de dona Dina e seu Xavier, para que o pai pudesse cumprir sua vida de viajante. Luizinho, como passou a ser chamado no morro de São Carlos, no Rio de Janeiro, logo aprendeu a tocar violão com seu padrinho, a sacar as malícias das ruas, e a ter vontade de conhecer outras bandas. Essa epopéia comum a tantos brasileiros, Gonzaguinha cantou “Com a perna no mundo”, de 1979, em que deixava um caloroso recado à madrinha querida: “Diz lá pra Dina que eu volto, que seu guri não fugiu, só quis saber como é, qual é, perna no mundo, sumiu...”

Espere por mim, morena

Moleque arisco e interessado em conhecer o mundo, Gonzaguinha decidiu aos 16 anos que queria cursar economia. Como os padrinhos Dina e Xavier, conhecido como Baiano do Violão, não tinham condições de pagar seus estudos, o menino resolveu por conta própria que iria morar com o pai. Depois de um começo de relação atribulada, com Gonzaguinha desentendendo-se constantemente com a madrasta e Luiz Gonzaga por conta de posições ideológicas, os ânimos se acalmaram, e a convivência entre os dois foi aos poucos melhorando. Gonzaguinha foi matriculado em um colégio interno e conseguiu concluir o curso que tanto queria. Mas a herança que pulsava em suas veias era a da música. Em 1967, seu pai gravou pela primeira vez uma composição sua: “From United States of Piauí”, canção bem humorada e crítica acerca dos americanismos na língua portuguesa. Mas somente em 1976, ele assumiria de vez as influências e a importância do pai em sua trajetória. No disco intitulado “Começaria Tudo Outra Vez”, gravou “Asa Branca”, um dos maiores sucessos de Luiz Gonzaga, e a toada “Espere por mim, morena”, grande êxito popular que trazia à tona o lado romântico e saudoso de um Gonzaguinha doce e leve, que falava de rede, cobertor e sol.



Grito de Alerta

No ambiente universitário, Gonzaguinha passou a ter contato com Ivan Lins, Aldir Blanc, César Costa Filho e outros, com quem formou o Movimento Artístico Universitário, conhecido como MAU. O grupo se reunia com freqüência na casa do psiquiatra Aluízio Porto Carreiro para longas conversas e rodas de violão. Passaram então a participar de festivais, e no ano em que foi vencedor com a canção “O Trem (Você se lembra daquela nêga maluca que desfilou nua pelas ruas de Madureira?)”, Gonzaguinha recebeu uma das maiores vaias de sua carreira. Apenas em 1973, ele conheceu o sucesso. Ao entoar “Comportamento Geral” no programa de Flávio Cavalcanti, Gonzaguinha chocou os jurados, esgotou o disco nas prateleiras e foi censurado pela ditadura. Além do espírito combativo, as reuniões na casa de Aluízio, renderam-lhe seu primeiro casamento, com Ângela Porto, mãe de seus dois primeiros filhos. O discurso do embate político cedia espaço em 1980 para um envolvente Gonzaguinha, que acostumado a ouvir na infância Jamelão, Lupicínio Rodrigues e músicas portuguesas, entregava para Maria Bethânia consagrar um samba-canção de sua autoria, em que discutia as difíceis questões do coração. Deixando de lado a razão, “Grito de Alerta” era uma tentativa sincera de se desapegar de questões menores e amar de portas abertas.



Guerreiro Menino


Gonzaguinha sempre foi considerado um artista de temperamento difícil, não gostava de dar autógrafos e raramente compunha com outros parceiros. Tido por muitos como mal humorado e arrogante, era na verdade um sujeito provocador, despojado, como ele próprio definia: “um grande gozador”, um moleque levado e teimoso que gostava de descumprir ordens. No entanto, o comportamento arredio e a desconfiança que lhe marcavam eram atribuídas por muitos aos conflitos que teve com Luiz Gonzaga. As diferenças entre os dois acabariam se tornando lá na frente o elo perfeito para formar uma parceria entre o sambista do morro carioca e o nordestino que inventou o baião, o destino de ambos cruzando o país, Gonzagão e Gonzaguinha. Já bem à vontade para tratar de temas mais sentimentais, Gonzaguinha teve gravada na voz de outro nordestino uma de suas músicas que continham maior ternura. Em 1983, seu compadre Fagner recebeu de Mariozinho Rocha o aviso de que Gonzaguinha havia lhe mandado uma música. O detalhe é que o empresário considerava que ela tinha sido feita “nas coxas” e não valia a pena gravá-la. Fagner insistiu, chorou de emoção ao ouvi-la e a transformou no carro-chefe do seu LP daquele ano. “Um homem também chora” delineava com maciez sensações singelas e muito humanas, habituadas a se esconderem atrás de hipocrisias. Gonzaguinha falava sem deixar passar nenhuma farpa da criança que constrói e existe em cada homem, da faceta mais frágil e carinhosa dos guerreiros meninos. E ele era um deles.



Sangrando, Explode Coração E Vamos à luta

No início da década de 80, Gonzaguinha passou a morar em Belo Horizonte com sua segunda esposa, Lelete. Desse casamento nasceu a sua caçulinha, Mariana, irmã de Daniel, Fernanda e Amora, filha do relacionamento do cantor com a Frenética Sandra Pêra. Nessa época, ele vivia sua melhor fase e já desfrutava dos sucessos de “Ponto de Interrogação”, “Grito de Alerta” e “Sangrando”. A balada imortalizada por Simone revelava um desenho auto-biográfico e pungente do compositor que não se dizia cantor, mas intérprete de suas emoções. Na letra de “Sangrando”, o intérprete se rendia por inteiro. Começava soltando a voz com um delicado pedido, para depois consentir que a música se apoderasse dele e exprimisse a vida em sua plenitude.

Contestador por natureza, em 1975 Gonzaguinha havia dispensado seus empresários para fundar depois seu próprio selo, Moleque, que também seria o nome do seu álbum de 1977. Nesse ano, “Explode Coração” tornou-se um dos maiores marcos de toda a carreira de Maria Bethânia. Intitulada inicialmente “Não dá mais pra segurar”, a música é um desabafo lento, progressivo, um exercício de confissão e entrega em que o compositor se despe de seus medos e aceita todos os desejos. Em “Explode Coração”, Gonzaguinha se descortina para que a vida entre sem pedir licença.



Durante a sua trajetória, Gonzaguinha conviveu com a pobreza na favela, problemas de saúde como as duas tuberculoses que teve, e a falta de liberdade imposta pela ditadura. Apesar disso, deu um jeito de driblar as armadilhas para conquistar o que achava que tinha direito. “E vamos à luta” é talvez o samba mais animado, emblemático e contagiante de sua obra. A música é um recado otimista de persistência e coragem direcionado aos brasileiros que batalham seu lugar ao sol diariamente, com espaço para uma fezinha especial na juventude. Através dos versos esfuziantes da canção, Gonzaguinha cultiva as delícias da união e do sonho. Gravada por ele em 1980, a música foi apresentada depois em duetos descontraídos com Alcione e Roberto Ribeiro.

Começaria tudo outra vez

Ao som de bolero, samba, baião ou toada. Assim Gonzaguinha escreveu seu nome na canção brasileira. Um nome que já tinha peso antes mesmo dele nascer, e que foi aos poucos penetrando nos ouvidos das pessoas com aquele diminutivo. O menino esguio que falava de dramas, amores e problemas sociais, cresceu e continuou menino. Continuou falando, cantando, observando aquilo que lhe tocava com o cuidado de quem enxerga uma fruta madura no pé da árvore. Gonzaguinha no palco era solto, espontâneo, como se estivesse em casa, mas quando escrevia era incisivo, agudo, enfático, dando a medida que lhe cabia da força dos relacionamentos humanos em sua vida. Não imaginava ele que em 1976, só estava no começo, mas ainda assim decidia: “Começaria tudo outra vez, se preciso fosse, meu amor...”

"Só quero ver as pessoas assoviando as minhas músicas" Gonzaguinha



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 26/09/2010.

3 comentários:

gonzaguinha disse...

Parabéns pelo texo e pelas fotos. Belo trabalho de pesquisa.
Um abraço,
Paulo Vandeley
www.gonzaguinha.com.br

walter disse...

valeu grande mestre e contestador das verdades

Alessandra Rezende disse...

Achei lindo esse jeito de se começar a falar da vida de Gonzaguinha!!!!
"da barba que escondia-lhe a chance de um sorriso mais largo, havia um coração pronto a explodir do menino que desceu o São Carlos para colocar o dedo na ferida dos problemas sociais e afetivos de mulheres e homens"

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