segunda-feira, 20 de setembro de 2010



Subindo as ruas íngremes de Bento Ribeiro, José Flores de Jesus lembra-se da sua adolescência, quando morava no subúrbio de Piedade, e de sua infância, que passara em Inhaúma, redutos conhecidos da malandragem do Rio de Janeiro. Ao passar pelas ruas do atual bairro, José Flores enxerga velas acesas, máscaras negras e pede licença para cantar o seu amor. Quando ele finalmente chega à roda de samba para a qual caminha, nem precisa se apresentar, todos já sabem que aquele sujeito de chapéu de aba pequena na cabeça, caixinha de fósforos na mão e andar sambado é o Zé Quietinho filho da dona Leonor, ou o Zé Kéti da Portela que hoje todos conhecem: a voz do morro, da opinião, da prece de esperança e do poema de botequim.



Neto do flautista e pianista João Dionísio Santana, o primeiro instrumento que Zé Quietinho tocou foi uma flautinha dada por sua mãe. Dali para as reuniões na casa do avô na companhia de Pixinguinha, Cândido das Neves, o Índio, e outros, o menino que era quieto foi se interessando cada vez mais pela música e compôs um choro para o qual deu o nome de “Remelexo”. Então em 1955, ele viu estourar na boca do povo o seu primeiro sucesso: A voz do morro, samba que exaltava o próprio como porta-estandarte da favela. Gravado por Jorge Goulart com arranjo do maestro Radamés Gnatalli, a música fez parte da trilha sonora do filme Rio 40 Graus, marco do cinema nacional dirigido por Nelson Pereira dos Santos, e rendeu ao menino Zé Quieto a sua primeira oportunidade como ator. Na pele de Neguinho ele dialogava com o malandro interpretado por Jece Valadão. Estava fazendo nada mais do que interpretar a si mesmo, e dar voz a seu povo sofrido com seu balanço de cronista esperto. Zé Kéti era o rei dos terreiros.

Diz que fui por aí

Depois de algumas voltas, em 1963 a música de Zé Kéti tornou-se conjunto musical. A Voz do Morro contava em sua formação com bambas do peso de Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Anescarzinho do Salgueiro, Nelson Sargento, Oscar Bigode, José da Cruz e Paulo César Batista de Faria, a quem Zé Kéti rebatizou de Paulinho da Viola. No mesmo ano, ele recebeu o convite para ser diretor artístico do Zicartola, com dona Zica na cozinha e Cartola no violão. Trazidos por Zé Kéti, a casa recebia artistas e atraía intelectuais da zona sul do Rio de Janeiro. Até que um dia chegou por lá Carlinhos Lyra, diretor da UNE e um dos integrantes do que viria a se chamar de bossa nova. Seria esse Carlinhos que apresentaria a Zé Kéti uma moça chamada Nara Leão, que era cantora e que gravaria em seu LP de estréia, com acompanhamento do violonista Geraldo Vespar, o samba “Diz que fui por aí”, no ano de 1964. A ditadura se instalava no Brasil enquanto o morro se unia à bossa nova da zona sul através da música e da boemia. Anos depois, a canção seria sucesso também nas vozes de Jair Rodrigues, Elis Regina e MPB-4, dentre vários outros que a regravaram.




Opinião


A união entre Zé Kéti e Nara Leão, que começara com a gravação daquela música sobre as andanças de um boêmio, se estenderia até os palcos de teatro sob o nome de “Opinião”. A música composta por Zé Kéti sobre o processo de remoção de favelas que era executado pelo governo da Guanabara, seria o mote perfeito para que no final de 1964 os artistas pudessem dar o seu primeiro grito de liberdade silenciada. E foi também no ambiente do Zicartola, onde segundo Zé Kéti os compositores podiam cantar à vontade, que surgiu a idéia do musical. Escrito por Paulo Pontes, Ferreira Gullar, Armando Costa e Oduvaldo Viana Filho, e contando com a direção de Augusto Boal, “Opinião” tornou-se um dos espetáculos mais bem sucedidos do teatro brasileiro, e consagrou definitivamente o sambista e poeta do seu povo Zé Kéti, que interpretava mais uma vez o malandro dos morros cariocas, e atuava ainda ao lado de Nara Leão no papel da mocinha da zona sul e João do Vale, representado a força do nordeste. O espetáculo encenado no Teatro de Arena, em Copacabana, e que depois daria nome a um famoso grupo de teatro de São Paulo, ficou mais de um ano em cartaz. Como já era comum na carreira de Zé Kéti, sua composição extrapolava as raízes da música, e tornava-se além de um emblemático espetáculo teatral, o nome de um jornal, de um teatro, um grupo de teatro e do segundo LP de Nara Leão. Era inclusive em uma de suas falas no Show Opinião que Zé Kéti explicava que adotara o K em seu nome por ser a inicial de estadistas da época, a exemplo de Kennedy e Kubitscheck, simbolizando mais uma vez o forte caráter político da Opinião. Apanhando ou não, Zé Kéti era um sambista livre, que dialogava com todas as formas de música que surgiam no país da censura.



Acender as velas

Depois de desfrutar do enorme sucesso de Opinião, Zé Kéti voltava-se novamente para o sofrimento do seu povo, e acendia velas contra o descaso que atingia crianças que morriam diariamente na sua favela. A amiga Nara Leão seria quem a gravaria primeiro, seguida depois com o mesmo sucesso por Elis Regina e Jair Rodrigues. No ano em que denunciava a tristeza que assaltava os morros, Zé Kéti era premiado com o troféu Euterpe, como melhor compositor carioca, e dividiria com Nelson Cavaquinho o posto de melhor compositor brasileiro, recebendo o troféu O Guarany. Também nesse ano, o conjunto que ele idealizara como A Voz do Morro, gravava o seu primeiro LP, através da Musidisc. Era o compositor sendo festejado e realizando vários sonhos no ano em que cantava o lado mais triste da favela, que via seu povo morrer sem querer morrer, iluminado apenas pela luz de velas.



Máscara Negra

Máscara negra foi o grande sucesso do carnaval de 1967. A marcha composta por Zé Kéti se tornaria uma das grandes músicas cantadas por Dalva de Oliveira, e um dos últimos êxitos populares de ambos. Vencedora do carnaval daquele ano, a canção contava a antiga história dos laços amorosos entre Pierrôt, Colombina e Arlequim. A diferença é que nos versos de Zé Kéti a história ganhava contornos líricos e suaves, aproveitando-se do grande talento do compositor. Além disso, Zé Kéti corrigia um erro histórico e dava nova chance a Pierrôt, fazendo com que Arlequim fosse o rejeitado dessa vez. Máscara negra é uma das mais belas músicas de carnaval já escritas, provando toda a essência poética do trabalho de Zé Kéti, que jamais mascarou os problemas do seu povo, mas também não deixou de iluminá-los com seus sambas e suas atuações.

Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 19/09/2010.

0 comentários:

Postar um comentário

Copyright 2010 A Força Que Nunca Seca *Template e layout layla*