segunda-feira, 29 de novembro de 2010




Não à toa chamam Mário Lago poeta. Além da função literária, ele desempenhava os serviços de ator, compositor, radialista e teatrólogo. Tudo com poesia. Sem mencionar que por desvios dessa vida que a gente não imagina, formou-se em advocacia, embora procurasse algumas vezes, esconder o diploma adquirido. Fonte de suas escritas eram as mulheres, Auroras e Amélias. E também o fracasso, condição existencial do homem. Por fim, nada além, Mário Lago somente poeta.




Ai, que saudades da Amélia

Mário Lago disse a vida inteira que Amélia não era mulher submissa, mas solidária, companheira, amiga nas horas difíceis. As feministas não o perdoaram por tais liberdades poéticas concedidas: “ás vezes passava fome ao meu lado, e achava bonito não ter o que comer”. A beleza do sofrimento retratada por Mário Lago, versos, e Ataulfo Alves, música, sobre a mulher idealizada, sinalizavam na realidade a dependência da atual esposa, segundo o próprio poeta: “Você não sabe o que é consciência, não vê que eu sou um pobre rapaz, você só pensa em luxo e riqueza, tudo que você vê você quer.” Lançada no carnaval de 1942, dividiu a preferência do público com “Praça Onze”, de Herivelto Martins e Grande Otelo, e o prêmio teve que ser dividido. No entanto, “Amélia” penou para conquistar garantida assumidade na música brasileira. Foi recusada por todos os cantores as quais se ofereceu, até que o próprio Ataulfo Alves resolveu gravá-la, com a companhia de Jacob do Bandolim tocando a introdução. A trajetória da protagonista não foi das mais suaves, mas ao final, estava consagrada. E olha que Amélia existiu de verdade.



Nada além

Custódio Mesquita e Mário Lago resumiram uma relação sublime na música brasileira. A alta costura dos versos do poeta associada ao esmero da melodia do compositor especificaram o amor em sua face menos dolorosa e possivelmente mais assumida, a doce ilusão. Docemente, Orlando Silva gravou o fox “Nada além”, em 1938, como era de sua categoria, acrescentando murmúrios chorosos ao final da canção. Nada mais bonito: “Nada além, nada além de uma ilusão, chega bem, que é demais para o meu coração, acreditando em tudo que o amor mentindo sempre diz, eu vou vivendo assim feliz, na ilusão de ser feliz.”



Aurora

Antes de Amélia, houve na vida de Mário Lago uma outra mulher. Sorte que ela não fosse sincera, pois inspirou-lhe belas alfinetadas na sabida moça. Carmen Miranda alçou ao sucesso as qualidadades de Aurora, que foi pela primeira vez cantada pela dupla Joel e Gaúcho. No carnaval de 1941, a marchinha de Roberto Roberti e Mário Lago alcançou glórias em terras brasileiras, inglesas e americanas, tornando-se inclusive, tema de filme estrangeiro.

Atire a primeira pedra

Foi ao Café Nice que Mário Lago se dirigiu para comemorar com Ataulfo Alves o estouro de “Atire a primeira pedra”, samba de amor custoso escrito pelos dois compositores. O famoso reduto da boêmia carioca abrigava a música como que por espontânea ligação religiosa. E eram versos religiosos que valorizavam o sucesso da composição em ritmo de penitência. Com a interpretação de Orlando Silva em 1944, foi lançada por Emilinha Borba no filme “Tristezas não pagam dívidas”. A música desfilou na boca do povo com tamanha empolgação no carnaval daquele ano que de acordo com Mário Lago foi a única vez que viu o amigo Ataulfo de “pilequinho”.



Fracasso

Herdada a música de seus avós e de seu pai, Mário Lago foi instruído pela mãe a seguir a carreira de Vinicius de Moraes. Não que ele fosse poeta, compositor, artista, “profissões de fome”, segundo o pai que as vira de perto. Queriam que fosse diplomata e usasse casaca, perfeita para seu porte alto e magro. Mas Mário Lago contrariou a todos e tornou-se aquilo que não queriam. Com exímia sabedoria poetizou o tempo, galanteou as artes e foi músico do amor. “Fracasso”, de 1946, é o samba-canção contrário à constância de sua trajetória, dedicada a aplausos por suas performances emocionais e honestas, ricas em despertar sinceros sentimentos. Os retumbantes versos finais da composição exclusiva de Mário Lago, “por te querer tanto bem e me fazer tanto mal”, emergiram das vozes graves de Francisco Alves e Nelson Gonçalves para perpetuar, mais uma vez, a essência de um homem que soube recolher da simplicidade o sumo de sua poesia.

“Fiz um acordo com o tempo, nem ele me persegue, nem eu fujo dele, um dia a gente se encontra” Mário Lago




Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 28/11/2010.




O auditório está de pé para apreciar a disputa entre duas vozes agudas que se elevam com categoria. Ao microfone da rádio elas se apresentam com a elegância de quem sabe ser majestade, e as bandeiras flutuantes na platéia alardeiam seus nomes, suspensas por exasperados fã-clubes que não se contentam em elegê-las somente rainhas das canções, promovendo uma histórica rivalidade. No topo mais alto da música, que és o lugar de direito, lá vem Marlene, pinta sob a boca, nariz em riste, lata d’água na cabeça. Lá vem Emilinha, com a mesma pinta, bem aprumada, despertando reações escandalosas. Nossas Rainhas Soberanas, exibem charme, e som de primeiríssima nobreza.



Lata d’água

“É a maior!” gritam os enunciados e admiradores da cantora que se apresenta no programa de Manoel Barcellos. E de fato, ela faz jus à exaltação. Marlene veio ao mundo Vitória e pisou na passarela de notas e versos já com a inspiração da atriz alemã que lhe emprestou o nome artístico. Caminhou sempre com nitidez de passos e o espetáculo que concede desde o início tornou-se sinônimo de autenticidade. Marlene tem no cantar uma marca que é só sua, própria, e inalcançável. E é com essa força da personalidade que ela dá vida à Maria do morro de Luis Antônio e Jota Júnior, no carnaval de 1952 que está gravado na batalha diária, sob o clamor que anuncia Marlene:

“Lata d’água na cabeça
Lá vai Maria, lá vai Maria
Sobe o morro não se cansa
Pela mão leva a criança, lá vai Maria”




Qui nem jiló

Marlene teve carreira internacional, sendo levada, em 1959, a se apresentar no Teatro Olympia, em Paris, pela diva francesa Edith Piaf. Mas foi em solo brasileiro que ela consolidou suas maiores conquistas, atuando em teatros, musicais e shows históricos, como o invejável “Carnavália”, protagonizado ao lado de Blecaute e Nuno Roland e planejado pela cronista Eneida. Na opinião de muitos, o maior espetáculo de carnaval que o Rio de Janeiro teve a honra de receber. E nessa brasilidade cativa que exerce, Marlene apreciou canções românticas e polcas com a mesma integridade que utilizou em sambas tornados imortais. Foi responsável, inclusive, por realizar uma das primeiras gravações da obra de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, com a companhia do grupo vocal Os Cariocas, o baião “Qui nem jiló, em 1949:

“Se a gente lembra só por lembrar
O amor que a gente um dia perdeu
Saudade inté que assim é bom
Pro cabra se convencer, que é feliz sem saber”




Mora na filosofia

A Favorita da Aeronáutica mantinha uma disputa externa com a Favorita da Marinha. As brigas, levadas frequentemente à cena pela ação dos fã-clubes, frutificaram em belas gravações em dupla de Marlene e Emilinha Borba. As duas rimaram guerra e paz como Monsueto e Arnaldo Passos rimavam amor e dor na moradia que construíram na filosofia. O samba de 1954 possui uma das mais bem acabadas letras da canção popular brasileira, sinalizando a deixa perfeita para uma intromissão oportuna do homem que grita em meio aos batuques: “Tá na cara!” Ao que Marlene antecede os versos: “Se seu corpo ficasse marcado, por lábios e mãos carinhosas, eu saberia, a quantos você pertencia, não vou me preocupar em ver, seu caso não é de ver pra crer.” Diamante lapidado que se abrilhanta na voz de Marlene, artista completa que oferece seu talento estelar por onde canta.

“Eu vou lhe dar a decisão
Botei na balança, você não pesou
Botei na peneira, você não passou
Mora, na filosofia, pra quê rimar
Amor e dor?”




Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 28/11/2010.




O pilantra que se auto-glorificava, Carlos Imperial, era mestre para advogar elogios em causa própria. Seus pupilos foram sempre dignos de receberem “Dez, nota dez!”, bordão que ele inventou para o carnaval carioca e que espalhava aos borbotões, infiltrando-se nos espaços mais obscuros com as ferramentas mais suspeitas que um rei pode utilizar. Seu Império subiu à superfície na base de muita esperteza, pilantragem e tino para a coisa, como ele próprio sugeria. O que ficou para a posterioridade? A imagem mal afamada de um sujeito querido por suas composições cheias de suingue e ritmo balanceado e contestado pela exibição barata de sua cafajestagem.



Mamãe passou açúcar em mim

Sem vergonha de utilizar métodos artificiais para promover seus objetivos, o Gordo, apelido de Carlos Imperial por sua postura corpulenta e despachada no comando de seus programas de TV ou no cinema, teve fundamental importância na criação do chamado rock jovem na música brasileira, que mais tarde ele rebatizaria de “pilantragem”. Depois de tentar lançar sem sucesso o ícone da Jovem Guarda que viria a ser Roberto Carlos e de participar da produção do primeiro álbum de Elis Regina, posta para rivalizar com Celly Campelo, Imperial viu no mulato Wilson Simonal sua mina de ouro descoberta. Foi pensando nele que o apresentador, cantor e agitador cultural mais aplaudido e vaiado nos anos 60, compôs a convencida “Mamãe passou açúcar em mim”, em 1966:

“Eu era neném, não tinha talco
Mamãe passou açúcar em mim
Mamãe passou açúcar em mim”




Você passa, eu acho graça

Se em suas tumultuadas presenças no jornalismo e na política, Imperial podia ser apontado por alguns como picareta, apresentando doses nada convencionais de escracho, no trato com a musicalidade ele cultivava exímia classe. Foi após ficar conhecido como grande referencial do rock solto da Jovem Guarda e da Pilantragem que ele se aventurou pelo prolífico campo do samba em homenagem a um desamor. Aparceirando-se com ninguém menos que o gentleman das palavras e melodias Ataulfo Alves ele se tornou co-autor da revigorante “Você passa, eu acho graça”, que em 1968 mandou um recado à flor que perdeu o encanto:

“E agora, você passa, eu acho graça
Nessa vida tudo passa, e você também passou
Entre as flores, você era a mais bela
Minha rosa amarela, que desfolhou, perdeu a cor”




O Bom

A voz rouca e encorpada de Eduardo Araújo já ecoava pelos campos da fazenda de seu pai em Joaíma, no interior de Minas Gerais, desde muito cedo, e logo o fez perceber que a carreira de veterinário talvez não fosse a melhor opção para sua vida. Partiu então em busca de outras terras e resolveu cavalgar pelas notas e acordes dançantes de um ritmo novo que surgia com força e ousadia no cenário musical brasileiro: a Jovem Guarda. Liderada por nomes como Roberto Carlos e Erasmo Carlos e tendo ainda em seu elenco as presenças marcantes de Renato e seus Blue Caps, Ronnie Von, The Fevers, Jerry Adriani, além das musas Wanderléa, Rosemary e Sylvinha Araújo, dentre outros, a Jovem Guarda logo emplacaria nas paradas de sucesso e faria com que um desesperançado Eduardo Araújo deixasse novamente a fazenda de seu pai e voltasse ao Rio de Janeiro, atrás do sonho de cavalgar na crista da onda daquele movimento. O que aconteceu efetivamente no ano de 1967 quando estourou com o seu primeiro sucesso, a canção “O bom”, de Carlos Imperial, que traduzia o comportamento e a postura artística daquela nova geração de músicos.

“Ele é o bom, é o bom, é o bom
“Ele é o bom, é o bom, é o bom
Ah!, Meu carro é vermelho, não uso espelho pra me pentear
botinha sem meia e só na areia eu sei trabalhar”




Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 28/11/2010.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010




Quem disse que acabou-se a monarquia no Brasil é porque nunca ouviu Marinês, autêntica rainha do ritmo e das tradições nordestinas.
Nascida em meio à Asa Branca e o pandeiro de ícones do forró, do xaxado e do baião como Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, Marinês deu seus primeiros passos na terra seca e amarelada do sertão pernambucano, mas foi em Campina Grande, no interior da Paraíba, que conheceu seu marido Abdias e formou com ele o “Casal da Alegria”.
Logo, os dois se juntaram ao zabumbeiro Cacau, completando o conjunto que começaria excursionando pela região nordeste e em breve ganharia todo o Brasil, toda sua gente.
Trazendo a sanfona, a zabumba, o agogô e o triângulo na sacola, Marinês tornou-se a primeira mulher a liderar com coroa de cangaceiro na cabeça um grupo de forró.



Disparada

A rainha que cantava com malícia e força ganhou logo de cara delatores e admiradores. O pai, embora fosse seresteiro, não a queria como cantora, e por isso ela resolveu que a partir daquele momento não seria Inês Caetano de Oliveira, seria Maria Inês, que por descuido de um radialista apressado, receberia em seguida novo batismo: Marinês. Além disso, padres católicos pediam aos fiéis que não comprassem seus discos, considerados pecaminosos e de mau gosto, embora sua mãe fosse cantora de igreja. Para completar, a rainha sofria ainda com o preconceito que vinha das outras regiões do país, que reagiam com pudor e desdém à música nordestina. Apesar de tudo, Marinês prosseguiu soberana entre sua gente e foi ao encontro do Rei do Baião. Luiz Gonzaga a coroou de imediato “Rainha do Xaxado”.

“Prepare o seu coração
Pras coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão
E posso não lhe agradar”




Gírias do norte

Quando desembarcou no Rio de Janeiro, trazendo para a Cidade Maravilhosa o canto arretado que ouvira desde pequena nos alto-falantes da Paraíba, Marinês recebeu de Chacrinha novo complemento ao seu nome, que fazia referência a todos aqueles que a adoravam e gostavam de sua música. Ela era a partir daquele instante o que sempre foi desde que saiu da barriga de sua mãe, era Marinês e sua gente. Porque Marinês é o nordeste por inteiro, na raiz, no caule, e por isso mesmo um pedaço importante e danado de bom do Brasil. E sua gente somos nós, súditos da Rainha do Xaxado, a Rainha do Forró, aquela que trouxe para o país inteiro as gírias gostosas do norte.

“O Zé-do-Brejo quando se casariou
Ele me convidariou
Pra quadrilha eu marcariá
Marcariei uma quadrilha ritmada
Fui até de madrugada
Todo mundo com seu pariá”




Bate coração

Nessa longa caminhada a rainha Marinês, neta de índios Airús, filha legítima do nordeste, participou do filme “Rico ri á toa”, de Roberto Faria, gravou disco “Feito com amor”, todo dedicado às festas juninas, recebeu dois prêmios Euterpe como melhor cantora regional e melhor vendagem, ganhou discos de ouro pelos LP´s “A Dama do Nordeste” e “Bate Coração”, gravou choros e temas românticos como “Carinhoso” de Pixinguinha e “O Amor morreu” de Dominguinhos e Anastácia, além das inesquecíveis e contagiantes “Peba na Pimenta” e “Pisa na fulô”, de João do Vale. Para coroar a trajetória de largo sucesso, a Rainha do Xaxado cantou ao lado de nomes quentes da música brasileira, como Gilberto Gil, Zé Ramalho, Alceu Valença, Genival Lacerda, Dominguinhos e sua principal seguidora, a leoa do norte Elba Ramalho.

“Oi tum, tum bate coração
Oi tum coração pode bater
Oi tum, tum bate coração
Que eu morro de amor com muito prazer”




Tá virando emprego

Após 71 anos entoando seu canto típico e ritmado, Marinês prossegue com aquela voz agitada e dançante que arrasta o pé e acelera o coração, animando quadrilhas e festas, animando qualquer pedaço de terra onde se dance um bom xaxado, um bom forró e um bom baião. Prossegue agora ao lado de São Pedro, Santo Antônio e São João.

“-Andam dizendo que nosso chamego
Nêgo tá virando emprego, nêgo falam pra daná
-Tem nada não nêga, se avexe não
Isso é pra quem canta forró, xote, baião”




Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 21/11/2010.

terça-feira, 16 de novembro de 2010




Antônio Nássara, ou simplesmente Nássara, nasceu na cidade do Rio de Janeiro no dia 11 de novembro de 1910 e faleceu no dia 11 de dezembro de 1996. Compositor e caricaturista, Nássara foi vizinho de Noel Rosa, e compôs com ele a marcha “Retiro da Saudade”, gravada por Francisco Alves e Carmen Miranda em 1934. Nássara completaria em 2010, 100 anos de vida, e foi o autor de sucessos como “Alá lá ô”, com Haroldo Lobo, “Mundo de Zinco” e “Balzaquiana” com Wilson Batista, “Formosa”, com J. Rui, “Periquitinho verde”, com Sá Róris, entre outros.



Autor do primeiro jingle do rádio brasileiro, Nássara tinha como uma de suas marcas registradas parodiar e utilizar versos de outras músicas em suas composições. Além disso, foi ele o ilustrador da capa do LP “Polêmica”, que trazia caricaturas de Noel Rosa e Wilson Batista. Por sua irreverência afiada de traços melodiosos e firmes, Antônio Nássara será sempre lembrado como um dos grandes artistas brasileiros, tanto na música, como no desenho, e merece todas as homenagens nesse centenário do seu nascimento.




Formosa


Nássara era um encantador de formas. Mesmo antes das notas e dos versos ele já trabalhava em suas linhas melódicas. Em 1928, chegou à Escola Nacional de Belas Artes e começou a desenvolver os pilares de sua paixão. Lá, formou um conjunto musical com Barata Ribeiro, Manuelito Xavier, Jaci Rosas, Luís Barbosa, e J. Rui, que se tornaria seu parceiro na canção “Formosa”. Lançada por Luís Barbosa e gravada no carnaval de 1933 pela dupla Francisco Alves e Mário Reis, a marcha foi a primeira música de Nássara a estourar na boca do povo. Sob confetes e serpentinas não havia quem não cantasse os irresistíveis versos: “Foi Deus quem te fez formosa, formosa, ô formosa, porém este mundo te tornou presunçosa, presunçosa...”



Periquitinho verde

“Periquitinho Verde” é um desses casos onde Nássara faz uso de sua verve cômica e sua conhecida habilidade em incorporar frases famosas de outras canções. Nessa marcha de 1938 ele costura com bom humor os enlaces matrimoniais sob o ponto de vista da mulher, que diz que não atura “mamãe eu quero mamar”. Amigo do ventríloquo Batista Júnior, pai das irmãs Batista, Nássara teve a oportunidade de ouvir a menina Dircinha Batista cantar e definir que ela lançasse a música, uma de suas parcerias com seu professor de desenho Sá Róris, também compositor.



Florisbela

A favorita para levar o concurso de carnaval do Rio de Janeiro em 1939 era “A Jardineira”, de Benedito Lacerda e Humberto Porto e lançada por Orlando Silva. Mas a vencedora foi “Florisbela”, de Nássara e Frazão, na voz do seresteiro Silvio Caldas. No mesmo ano, as duas músicas foram citadas na obra-prima de Ary Barroso “Camisa Amarela”, que também trazia em sua letra o tema carnavalesco. Apesar disso, Nássara reclamava que a composição sobre as paqueras de um casal fosse pouco regravada.




Meu consolo é você


No mesmo 78 rotações em que cantava “A Jardineira”, Orlando Silva apresentava “Meu consolo é você”, de Nássara e Roberto Martins. Em virtude da primazia da composição, considerada uma das mais belas do cancioneiro brasileiro, o “Cantor das Multidões” conseguiu algo raro: fazer sucesso com os dois lados do disco. A música sagrou-se vencedora no concurso promovido pela prefeitura do Rio de Janeiro daquele ano, então Distrito Federal, categorizada como melhor samba. O pedido de perdão em forma musical recebeu os arranjos do maestro Radamés Gnatalli.



Nós queremos uma valsa

Frazão foi sem dúvida o parceiro mais imponente de Nássara. Tanto no sobrenome sonoro, precedido por um extravagante Eratóstenes, como no que diz respeito ao número de sucessos. Entre todos eles, “Nós queremos uma valsa”, possui história das mais interessantes. A idéia criativa de lançar a música em pleno carnaval de1941 foi de Frazão, e trouxe alívio supressor à Morais Cardoso. Tudo porque o jornalista do periódico “A Noite” era simplesmente o primeiro Rei Momo do carnaval brasileiro, e como tal, cumpria o figurino de porções vantajosas em seu corpo portuário de cervejas. Os desfiles em ritmo de samba e marchas alucinantes deixavam seus pés enormes ainda mais inchados. Por isso, a novidade foi instituída de imediato pelo Rei Momo e tornou-se sucesso na voz de outro Rei, o da Valsa, Carlos Galhardo, também gravada ao acordeom por Luiz Gonzaga. Toques de clarim anunciam a entrada triunfante da música que saúda os patinadores.



Alá lá ô

O folião Haroldo Lobo, apelidado de clarinete por sua voz agudíssima, era segundo o amigo Antônio Nássara: fabuloso. E tinha razão de ser. Criador de inúmeras marchinhas que se tornaram parte integrante da memória carnavalesca, ele pediu para o caricaturista completar uma despretensiosa composição do ano anterior. Como não podia deixar de ser, a música era em ritmo de festa e euforia e destacava versos que falavam de sol e caravan. Para isso, Nássara unificou uma divindade a um conhecido cartão postal africano, o deserto do Saara. Pronto, dali para Haroldo arrematar com o refrão entusiasmado foi um pulo: “Alá lá ôôô, mas que calor, ôôô...”. Faltava agora os arranjos e a orquestração, definidos com maestria e alta categoria por ninguém menos que Pixinguinha. Nas palavras de Nássara: "Pixinguinha tinha dividido a melodia em compassos marcantes, saltitantes, brejeiros, originais, vestindo-a com roupagem da alma popular. E eu tive uma sorte danada porque "Alá lá ô" ficou sendo uma das músicas mais tocadas no carnaval. Das que fiz, foi a única que me rendeu alguma coisa”. A música gravada por Carlos Galhardo em novembro de 1940 foi lançada no carnaval de 1941. Virou sucesso permanente.




Balzaquiana


A gíria criada por Nássara para denominar as “mulheres depois dos trinta anos” foi tirada de um conhecido romance de Honoré de Balzac. Fazendo uso de sua conhecida perspicácia, Nássara percebeu ponto aberto para brincar com divertida preferência amorosa. Seminal grão da celebrada parceria entre ele e Wilson Batista, a marcha ecoou na voz do iniciante Jorge Goulart em 1950, e garantiu ao cantor seu primeiro sucesso. Dali em diante, Jorge se tornaria especialista em canções do gênero e gravaria novos sucessos da recém-formada dupla. A música alcançou tal proporção que foi traduzida pelo radialista e adido cultural da embaixada francesa no Brasil, Michel Simon. No país de origem do autor que dá nome ao título, a canção pôde ser ouvida em comemoração ao centenário do seu nascimento. Hoje, a versão francesa encontra-se na “Casa de Balzac”, museu que guarda as memórias do escritor francês.



Sereia de Copacabana

Filho de libaneses, o carioquíssimo Nássara iniciou sua carreira de compositor vencendo concursos em que participavam Lamartine Babo, Ary Barroso e seu vizinho de Vila Isabel, Noel Rosa. Consagrado através das marchas, Nássara proporciona animada disputa, dessa vez entre mulheres de vários países, mas seu coração acaba se decidindo pela sereia brasileira, em parceria sua com Wilson Batista. “Sereia de Copacabana” foi recebida pelo público através da voz encorpada de Jorge Goulart, no carnaval de 1951.



Mundo de zinco

Crescido em ambiente carnavalesco, Nássara ajudou a organizar em 1932 o primeiro concurso de escolas de samba do Rio de Janeiro. Frequentador do “Ponto de Cém Reis” e do “Café Nice”, locais de encontro da boêmia, em 1952 ele compôs ao lado de Wilson Batista, um samba para Mangueira, escola que contava com sua torcida. Visualisando a história do morro, os versos finais da música são em tom de despedida e deixam clara a intenção dos compositores de exaltarem o que admiram: a glória do samba, o céu de Mangueira, os malandros e as cabrochas. Interpretada por Jorge Goulart, foi premiada como samba mais bonito do carnaval carioca daquele ano. De acordo com o jornal “Última Hora” da época, possuidora de “letra inspirada, bonita e ao mesmo tempo fácil de ser apanhada pelo povo; sua música é melódica, mesmo nas estridências necessárias do apito de trem, harmonizando-se em ritmo essencialmente vivo e vibrátil.”



Chico Viola

A morte de Francisco Alves, aclamado como o Rei da Voz, em acidente de carro em 1952, comoveu o Brasil inteiro. Não apenas as escolas de samba choraram, mas todos que eram fãs e parceiros do cantor, e por isso Wilson Batista e Nássara escreveram uma das mais tocantes músicas para se despedir do amigo. Conhecido no meio musical por Chico Viola, o apelido serviu para expressar a dor que os compositores sentiam pela falta daquele que reinou absoluto nas primeiras décadas de ouro do rádio brasileiro, com direito à menção honrosa ao poeta Noel. Cantada na voz emocionada de Linda Batista, foi gravada em 1953, e acabou se transformando na última canção de expressividade de Nássara. Desiludido com a maneira como passou a ser comercializada a festa que tanto adorou, só voltaria a compor em 1968, lançando a marcha “O craque do tamborim”, com Luís Reis. O caricaturista que começou fazendo fado para o anúncio de uma padaria no “Programa Casé”, abandonou a arquitetura e acabou desenhado como a cara de um carnaval engraçado e alegre.

"Alá, Alá, Alá, meu bom Alá, mande água pra Ioiô, mande água pra Iaiá" Nássara



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 14/11/2010.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010




Era só o gongo começar a soar que você saberia que ele estava em cena, com seus óculos circulares, seu bigodinho aparado e sua voz polêmica. Mas o gongo nunca soou para ele, um dos poucos que passaria impune a seu rigor seletivo. Ary Barroso do Brasil nasceu no interior de Minas Gerais, cresceu na capital do Rio de Janeiro e se apaixonou pelo cartão postal do Nordeste: A Bahia. Para ela compôs as mais passionais confissões, para o Rio de Janeiro as mais otimistas e se lhe perguntassem se ele nunca compôs para a terra onde nascera diria com humor ácido: “Afogue a saudade nos copos de Ubá”. Muitas lendas e folclores se perpetuaram sobre sua figura mítica, um dos símbolos de um Brasil musical que ele defendia com unhas, dentes e microfones. Fosse narrando os jogos do Flamengo ou acompanhando Carmen Miranda ao piano, Ary Barroso sempre esteve ao lado das bandeiras mais populares do seu país. E talvez seja ele a maior de todas elas.



Dois dos maiores defensores da música brasileira romperam laços por conta da “Aquarela do Brasil.” Tudo porque o samba-exaltação composto por Ary Barroso em 1939 não venceu o concurso promovido pelo maestro Heitor Villa-Lobos no ano seguinte. A música urdida ao piano em uma noite chuvosa do Rio de Janeiro logo recebeu as críticas do cunhado de Ary, que questionou qual coqueiro não dava coco, e revelou-se em seguida carro-chefe da caravana cheia de balangandãs e reis congos que percorreu os Estados Unidos. Por ocorrência da “política de boa vizinhança” promovida por seu país, o cineasta Walt Disney veio parar em terras brasileiras e descobriu por aqui o balanço do samba. Encantou-se com a miscelânea de Ary Barroso e a escolheu para trilha sonora do filme que tinha Zé Carioca no papel principal, a animação “Alô, Amigos”. No país norte-americano, a música ganhou novo título: “Brazil”, e versos em inglês escritos por Ray Gilbert. Exemplo maior da maneira entusiástica e efusiva com que Ary costumava se pronunciar, “Aquarela do Brasil” é clássico irretocável do cancioneiro brasileiro, e chegou a ser conclamada a Hino Nacional alternativo, tamanha adoração popular. Sucesso imediato na voz de Francisco Alves, foi lançada por Araci Cortes e incluída no espetáculo “Joujoux e Balangandãs” na voz do barítono Cândido Botelho. Os arranjos criados por Radamés Gnatalli, com um piano imitando o som de tamborins, e a percussão comandada por Luciano Perrone contribuíram decisivamente para abarcar ainda mais grandiosidade à “saudação eterna” de Ary Barroso, como ele próprio dizia. Sobre a façanha, Radamés comentou: “Esse negócio não é meu não. É do Ary Barroso. Eu apenas botei no lugar certo. O Ary queria que eu usasse o tema nos contrabaixos, mas não ia fazer efeito nenhum. Eu então botei cinco saxes fazendo aquilo. O que eu inventei foi o arranjo pra botar a sugestão no lugar certo”.



E assim consagrou-se a canção e o ritmo inventados por Ary, que entremeava um falar rebuscado a expressões simples, destacando a paisagem límpida brasileira. Em 1955, ao receber a Comenda da Ordem do Mérito Nacional ao lado de Heitor Villa-Lobos, ficou sabendo que perdera o concurso para David Nasser porque este passava por dificuldades financeiras, e o maestro resolvera ajudá-lo. Reconciliou-se com o colega e os dois se abraçaram festejando a aquarela de cores do Brasil, preciosa e rica como os coqueiros que costumam dar coco em algumas terras.

Faceira


O menino Ary Evangelista Barroso se viu órfão aos sete anos, e foi morar com a avó Gabriela e a tia Ritinha. Começava ali, o “turbilhão de sua vida”, em suas próprias palavras. A tia foi quem lhe ensinou a tocar piano. Com dois pires colocados sobre as mãos, aprendeu a equilibrar as notas para fugir dos castigos. O talento perene o levou a acompanhar a professora em sessões do cinema mudo, fazendo o fundo musical de comédias e dramas. Tinha então doze anos, e levaria consigo as lições aprendidas para o Rio de Janeiro, onde rumara para cursar Direito. Em 1922, reprovado pela advocacia, foi aprovado pela música. De pianista do cinema Íris passou a ser integrante de orquestras. Após algumas composições sem muito alarde, com exceção de “Vamos deixar de intimidade”, gravada pelo colega de curso Mário Reis, ganhou o primeiro lugar do concurso de carnaval promovido pela Casa Edison, em 1930, com a música “Dá Nela”. Um ano depois, seu primeiro grande sucesso: “Faceira”, samba esperto que segue o requebrado da mulher da história. Gravada pelo iniciante Silvio Caldas, que inventou o breque da música, o cantor teve que repeti-la oito vezes durante a apresentação no Teatro Recreio, refém da empolgação da platéia.




No tabuleiro da baiana


Carmen Miranda foi a cantora que mais gravou Ary Barroso, ao todo 30 composições. Os dois se conheceram através da música e dos laços matrimoniais. Carmen era amiga da esposa de Ary e praticamente madrinha de sua filha. Quando os dois viajaram juntos para os Estados Unidos, em virtude do sucesso que faziam por lá, espalhou-se no Brasil um boato de que iriam se casar. A relação entre eles começou em 1931 e gerou diversos frutos para a música brasileira, entre eles “No tabuleiro da baiana”, de 1936. O samba-batuque, também chamado de samba-receita ou samba-jongo, foi vendido pelo autor para Jardel Jercolis utilizar no Teatro de Revista, em interpretação da dupla Déo Maia & Grande Otelo. Quando Ary Barroso espantou-se com o sucesso do número resolveu pegar de volta o filho que era seu, apadrinhado por Carmen Miranda e Luís Barbosa em gravação primorosa que contou com o acompanhamento do Regional de Pixinguinha e Luperce Miranda e os improvisos bem colocados pelo cantor. Misturando elementos típicos da cultura baiana ao amor e ao samba e tornando-os definitivamente parte da mesma receita, Ary Barroso criou um dos pratos mais famosos da culinária musical. Suas inovações estilísticas começavam a se sobressair na voz da “Pequena Notável.” Porém o casamento entre o compositor e a cantora não passou de imaginação do povo brasileiro.



Camisa Amarela

Todos temiam o gongo do “Calouros em Desfile”, programa criado por Ary Barroso que transformou-se no maior marco do gênero. Nele se apresentaram nomes como Ângela Maria, Lúcio Alves, Elza Soares, que deu uma resposta enviesada para o apresentador, e até Dolores Duran, que temeu críticas por sua voz doce. Todos passaram pelo crivo de Ary Barroso. Desfilaram na passarela exibindo vozes que brilhavam tanto quanto a “Camisa Amarela” que Aracy de Almeida cantou em 1939, segundo Ary Barroso sua melhor escolha de intérprete para uma música sua. A canção foi uma das poucas cantadas em disco pelo próprio Ary Barroso, e conta a história do folião que se perde na avenida e volta para casa cansado, um trapo, pedaço de gente para sua amada. Além disso, a letra cita sucessos carnavalescos da época, “Florisbela” e “A Jardineira”.

Na batucada da vida

O Flamengo foi o primeiro time a ter seus gols comemorados no rádio através de uma gaita. Invenção do fanático Ary Barroso, que não se preocupava em disfarçar o amor pelo clube. Fazia de tudo, invadia o campo, xingava o juiz e até recusava propostas de se mudar para o exterior, sob a alegação: “Lá não existe Flamengo de Futebol e Regatas”. Anos mais tarde, em 1960, ele se tornaria vice-presidente do departamento cultural e recreativo do clube. Nascido desse estilo acalorado, tomou forma um samba que teve na passional Elis Regina sua intérprete mais festejada. A música foi lançada por Carmen Miranda em 1934 e regravada por Dircinha Batista em 1950, com acompanhamento de Ary Barroso ao piano. “Na batucada da vida” relata as batalhas de uma mulher destemida.




Risque


Ary Barroso era árduo partidarista da música brasileira, do samba na sua essência. Recusava candidatos que se atravessem a cantar músicas estrangeiras em seus programas e não hesitava em espinafrá-los publicamente. Em 1952, resolveu criar um samba-canção a despeito de provar que era capaz de compor naquele gênero considerado mais elevado. Para ele, o samba sempre foi a menina dos olhos, e por isso brigou com autoridade para que sua música não fosse gravada em ritmo de bolero. “Risque” foi lançada por Aurora Miranda e virou clássico a partir da gravação de Linda Batista em 1953. O cronista irônico desfiava seu olhar sobre os relacionamentos dramáticos: “Risque, seu nome do meu caderno, já não suporto o inferno, do nosso amor fracassado...”

No Rancho Fundo

Luiz Peixoto, Noel Rosa e Vinicius de Moraes foram alguns dos que tiveram o privilégio de compor com Ary Barroso. Acostumado a criar letra e música sozinho, ele abria raras exceções para parcerias. Numa dessas, Lamartine Babo resolveu se intrometer a mexer na letra de J. Carlos, sobre música de Ary. “Na Grota Funda” perdeu o título original e recebeu versos mais inspirados: “No Rancho Fundo, bem pra lá do fim do mundo, onde a dor e a saudade, contam coisas da cidade”. A canção gravada por Elisa Coelho, em 1931, passou a se associar indistintamente a lembranças de um lugar tranquilo e sereno que o tempo se encarregou de varrer. Nos anos seguintes foi regravada por Silvio Caldas e Isaura Garcia. Como resultado, Ary Barroso ganhou o desafeto de J. Carlos e presenteou a música brasileira com uma parceria consagrada.



Isto aqui o que é?

Antes de ser eleito vereador do Rio de Janeiro, pela UDN em 1946, Ary Barroso já travava disputas políticas. Tornou-se um dos primeiros presidentes da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores da Música, e encampou desde cedo a luta pelos direitos autorais. Já instituído no cargo, brigou com Carlos Lacerda, único vereador com votação superior à sua, para que fosse construído o estádio do Maracanã. Aliou-se aos comunistas, maioria da bancada, e como era de seu feitio, conseguiu o que queria. A tragédia presenciada naquele estádio, na final da Copa do Mundo de 1950, abafava os versos de uma canção composta por Ary Barroso em 1942. Mas o palco verde que ele desejara ainda cederia espaço muitas vezes para a alegria, a raça, as morenas e as sandálias, de uma “raça que não tem medo da fumaça, e não se entrega não”. “Isto aqui, ô, ô, é um pouquinho de Brasil Iá, Iá...”



Na Baixa do Sapateiro

A Bahia foi o grande amor paisagístico de Ary Barroso. Por ela se embeveceu ao excursionar com orquestra da qual participava em 1929. E a cidade nunca mais saiu do seu pensamento, recebendo várias homenagens emocionadas. A mais famosa delas é “Na baixa do Sapateiro”, segunda música mais gravada da lavra de Ary Barroso, perdendo somente para a patrimonial “Aquarela do Brasil”. O título é inspirado no nome popular de uma rua de Salvador, e serviu de mote para que Ary pudesse suspirar um encontro afetuoso entre ele e uma morena frajola. Com início retumbante e desenrolar mais ameno, a música chamou a atenção novamente dos produtores americanos, e foi incluída em mais um filme de Walt Disney, “Você já foi à Bahia?”, com título modificado para o nome do local citado. Todo o encantamento em torno da música rendeu a Ary Barroso novos convites para trabalhar nos Estados Unidos, em sintonia com Carmen Miranda, que a lançou. Os planos não deram certo, desentendimentos e desencontros certificaram para Ary Barroso que ele pertencia mesmo à Bahia, ao Brasil.



Folha Morta

A boemia capturou Ary Barroso na primeira noite que ele chegou ao Rio de Janeiro. Acabou gastando todo o dinheiro ganho da herança de um tio. Por essas andanças noturnas fez amigos e parceiros, entre eles o compositor e cronista Antônio Maria, autor de “Ninguém me ama”, grande sucesso de 1952 na voz de Nora Ney. De personalidade difícil e tempestuosa, Ary pediu para Maria cantar “Aquarela do Brasil, e ele assim o fez na íntegra. Em seguida disse para Antônio pedir que ele cantasse “Ninguém me ama”. Mesmo desconfiado, o autor do estouro atendeu, ao que Ary respondeu debochando: “Não sei!”. No ano seguinte, Dalva de Oliveira gravou em Londres, com a companhia de Roberto Inglez, “Folha Morta”, clássico samba-canção sobre as desventuras do protagonista, eternizada nos versos: “Oh Deus, como sou infeliz”. A mesma música gerou nova ironizada de Ary Barroso, que direcionou suas farpas para Jamelão quando o sambista errou a letra, e cantou “mostrar minhas penas” no lugar de “matar minhas penas”. A resposta de Ary veio sem perdão: “Jamelão, você nunca reparou que eu sou implume?”




Maria


A mulher de toda a vida de Ary Barroso foi Ivone Belfort. Conheceram-se quando ela tinha 13 anos, numa das pensões em que o pianista iniciante se hospedava no Rio de Janeiro. Puderam se casar em 1930, com o dinheiro do prêmio ganho pelo compositor. Com ela, Ary teve seus dois filhos, Mariúza e Flávio Rubens. “Maria”, talvez a música mais romântica de Ary Barroso, provavelmente tenha recebido esse nome para servir de fundo a vários casais apaixonados. O nome que principiava na mão de Ary Barroso era Ivone. A música foi lançada por Silvio Caldas, dois anos após o casamento.

É luxo só

Muitos causos se propagaram sobre Ary Barroso, aquele homem ranzinza, esguio. Aquele compositor brilhante. O radialista de terno alinhado e gravata arrumada. O locutor destemperado e intempestivo. O comandante de programa de calouros mais mal humorado e temido. Ary Barroso era possuidor de caráter irreversível, e só se deixava transpor pelas águas dos rios. Exaltava a aquarela brasileira e o ritmo do samba de direito. Formou-se em advocacia, mas nunca exerceu. Seu legado foram as notas e os versos. Em 1957 foi homenageado em vida, com o espetáculo “Mr. Samba”, produzido por Carlos Machado. Em 1964, receberia mais louros, com o desfile da escola de samba Império Serrano. Não viu, se despediu no mesmo dia à noite. Antes, em outra passagem folclórica de sua história, teve tempo de ligar para o amigo David Nasser do hospital, e sentenciar com sua mordacidade: “Estou me despedindo. Vou morrer. Estão tocando minhas músicas no rádio.” A mesma que desferiu contra um calouro que ousou dizer que cantaria um “sambinha” em seu programa: “É sempre assim. Se fosse mambo, não seria um mambinho. Se fosse bolero, não seria bolerinho. Mas samba é um sambinha. E que sambinha o senhor vai cantar?”. A música era “Aquarela do Brasil”. Desbocado algumas vezes, ríspido quando podia, sempre perpetuando sua aura, Ary Barroso compôs com Luiz Peixoto seu último sucesso, em 1957, adornado por um título demonstrativo à sua obra: “É luxo só”.

"Meu coração é um pandeiro" Ary Barroso



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 07/11/2010.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010




O jeito de tocar o violão e o cavaquinho que lhe rendeu o apelido, beliscando as cordas com dois dedos, e a voz desafinada, sempre embargada de uma profunda tristeza, ajudam a compreender a essência daquele artista. Mergulhado na boêmia, Nelson Cavaquinho fazia da melancolia seu mote para compor sambas sinceros e profundos, como “Folhas Secas”, “A flor e o espinho” e “Quando eu me chamar saudade”, todas com Guilherme de Brito, além de criar a obra-prima “Luz Negra”, na qual mais uma vez se despedia da vida, alçada ao sucesso nas vozes de Nara Leão e Elizeth Cardoso. Sempre ligando o amor à tragédia, Nelson Cavaquinho foi um instrumentista, compositor e poeta que viveu a vida inspirado pela morte, e que soube tirar dela letras e melodias cheias de luz, mesmo negras, cheias de flores, mesmo que com espinhos e cheias de folhas, até mesmo as secas.



“A flor e o espinho” nasceu do cavaquinho de Nelson com a ajuda de mais um desses parceiros que ele conheceu nas mesas de boteco. Guilherme de Brito pediu a todos que tirassem o “sorriso do caminho”, pois ele ia passar com sua dor. O autor desses versos imponentes e tristonhos realmente conheceu Nelson em seu habitat preferido, mas diferente de outros “compositores de ocasião”, participou com poesia e não com dinheiro da canção gravada pelo cantor Raul Moreno, em 1957. O outro parceiro de Nelson na canção é Alcides Caminha, que só mais tarde teria sua identidade revelada, era o desenhista Carlos Zéfiro, famoso pelos quadrinhos eróticos nas décadas de 50 e 60. Escondido com sua voz nos porões do “Cabaré dos Bandidos”, Nelson só apareceria em disco em 1965, ao tocar seu violão rústico na música que era cantada por Elizeth Cardoso. O álbum chamava-se “Elizeth sobe o morro”. Nelson descia aos poucos para o estrelato.

Rugas

Nelson Antônio da Silva virou Cavaquinho depois que se enturmou nas rodas de choro com Edgar Flauta da Gávea, Heitor dos Prazeres, Mazinho do Bandolim e Juquinha, mas continuou assinando suas composições, quando assinava, como N. Silva. Isso porque tinha a mania de guardar as músicas na cabeça cheia de cachaça, e muitas delas se perderam. A primeira gravada foi “Não faça vontade a ela”, por Alcides Gerardi, onde já começou sua travessia empoeirada de trocar canções por favores. Henricão e Rubens Campos o ajudaram e foram incluídos como autores. Mas em 1943, o sambista Ciro Monteiro o conheceu e começou a remexer em seu repertório, pescando preciosidades até descobrir a música “Rugas”, de Nelson, Augusto Garcez e Ary Monteiro. No primeiro clássico do sambista que se fez no choro, Nelson dilacerava corações otimistas, ao definir a vida: “Feliz aquele que sabe sofrer”. Mais tarde ele diria como quem fala a um amigo: “Essa é uma das músicas que o Vinicius de Moraes e o Carlos Jobim me pedem pra cantar.”



Luz Negra

Nelson Cavaquinho costumava se esgueirar em qualquer tipo de bar que visse. E o Zicartola, do amigo Cartola e sua esposa Dona Zica, foi mais um desses onde ele firmou residência fixa, diferente do lar matrimonial, que deixava Alice, sua primeira esposa, quase sempre acompanhada apenas dos três filhos. Nelson conheceu o amigo dono do bar enquanto fazia uma ronda no morro de Mangueira, e logo fizeram uma música juntos: “Devia ser condenada”. Qual não foi a surpresa de Cartola quando um sujeito qualquer cantou-lhe o samba afirmando que a música era sua, pois a havia comprado de Nelson, que se justificou depois com o parceiro: “Mas eu só vendi a minha parte.” Apesar do incidente bastante praticado na vida de Nelson, ele era um dos convidados mais freqüentes da atração comandada por Cartola e que recebia bambas do porte de Zé Kéti, Paulinho da Viola e o bossanovista Carlinhos Lyra que passava por lá para espiar. Também vinda da bossa-nova, Nara Leão ouviu Nelson cantar “Luz Negra”, que na versão dedilhada por Baden Powell em 1961 tinha o nome de Irani Barros na parceria e quando foi lançada em 1964 o de Amâncio Cardoso. A canção saiu no disco em que a estrela do espetáculo “Opinião” também cantava músicas de Zé Kéti, Elton Medeiros e Cartola. Um ano depois, a música serviu de trilha para o filme “A Falecida”, adaptação de Leon Hirszman para a peça de Nelson Rodrigues, com orquestração de Radamés Gnatalli. Também em 1965, Nelson cantou seu lamento rumo à despedida no disco de Elizeth Cardoso, em que subiam o morro os sambistas Paulinho da Viola e Nelson Sargento.



Folhas secas

O pai de Nelson Cavaquinho chamava-se Brás Antônio da Silva, e era contramestre da Banda da Polícia Militar do Rio de Janeiro, onde tocava tuba, a mãe chamava-se Maria Paula da Silva, e lavava roupa para as freiras Carmelitas do convento de Santa Teresa. Da mãe, Nelson herdou a adoração fervorosa pela religião, e do pai, o gosto pela música. Unindo o estilo boêmio à religiosidade, Nelson criou verdadeiros clássicos do samba. O que só foi possível porque na juventude, quando ele não tinha dinheiro para comprar um instrumento, o jardineiro Ventura, que o assistia disputar “quedas” com os outros chorões, deu-lhe de presente um cavaquinho. Nelson deixou de pedir emprestado o auxílio feito de madeira dos outros músicos, entre eles Romualdo e Luperce Miranda, mas não parou de inovar. Ainda em criança, ele havia feito de uma tampa de caixa de charutos e barbantes esticados o necessário para tirar um som. No ano de 1973, lembrando com nostalgia sua mocidade, Nelson compôs ao lado do parceiro Guilherme de Brito, a essencial “Folhas Secas”, que prestava uma homenagem à querida Mangueira, onde ele conhecera o samba que o levaria por toda a vida. A música foi alvo de uma polêmica jamais resolvida entre Elis Regina e Beth Carvalho, que a lançaram no mesmo ano. Inicialmente dada para Beth gravar, foi levada pelo arranjador César Camargo Mariano para Elis. O resultado foram dois registros belíssimos para a música brasileira e uma desavença severa entre as duas intérpretes.



Degraus da vida

O verdadeiro mestre de Nelson Cavaquinho na arte de empunhar o instrumento foi o violonista Juquinha. Para ele, Nelson dedicou seu segundo choro, “Gargalhada”, que simbolizava o gesto do professor toda vez que o aluno vencia uma “queda”, ou seja, quando quem está solando consegue fazer com que os outros músicos se percam. Nessa época, ao se casar com Alice, Nelson passou a precisar de um emprego, e o pai resolveu alterar a sua certidão de nascimento para que ele pudesse ingressar na cavalaria da Polícia Militar do Rio de Janeiro. O casamento e o emprego deram-se na forma de obrigação pelo pai da moça e de Nelson. A boemia e o samba foram uma opção de vida. Por conta dessas controversas realidades, Nelson ficou um ano mais velho, e tirou da boca do pai doente a inspiração para compor “Degraus da Vida”, ao ouvi-lo dizer: “sei que estou no último quartel da vida.” Nelson trocou quartel por degrau e teve a música chorosa lançada por Roberto Silva em 1950 e relançada pelo mesmo Roberto em 1961. A parceria ainda rendeu a Nelson Cavaquinho cerca de cem mil réis, ao incluir o nome de César Brasil na autoria da canção. É que Nelson subia regularmente os degraus do hotel de César, que nunca escreveu um verso ou tocou uma nota musical na vida.



Pranto de poeta

Em suas andanças pelos subúrbios do Rio de Janeiro, Nelson Cavaquinho freqüentemente amarrava seu cavalo, conhecido como Vovô, em uma árvore no Morro de Mangueira e ia ao encontro de sambistas como Zé da Zilda, Carlos Cachaça e Cartola. Desde cedo conhecedor da alta malandragem carioca, representada por nomes como Brancura, Edgar e Camisa Preta, Nelson tornou-se amigo dos sambistas do morro a partir do emprego que conseguiu na polícia. Ficava horas bebendo cachaça e conversando com Cartola. Numa dessas, seu cavalo acabou fugindo e retornou sozinho para o Batalhão, o que ocasionou mais uma dentre as muitas prisões de Nelson, que habituado a ficar dias sem aparecer, aproveitava o tempo na cela para compor. Sobre esse episódio, Nelson diria em entrevista: ”E não é que o danado do cavalo tava rindo de mim quando cheguei no Batalhão?". No ano de 1938, antes de ser expulso da corporação, Nelson conseguiu dar baixa em seu cargo na polícia, separou-se de Alice e se entregou definitivamente ao samba e à boêmia. Em 1952 foi morar em Mangueira, onde permaneceu por um ano e meio, e em 1968, dividiu com Cartola, Clementina de Jesus, Carlos Cachaça e Odete Amaral os vocais de “Fala Mangueira”, produzido por Hermínio Bello de Carvalho. Já ao lado de Guilherme de Brito, ele compôs a música que seria lançada em 1957 por Lucy Rosana, gravada em 1965 por Nara Leão e interpretada em dueto nada sóbrio de sua parte por ele e Cartola, em 1977, “Pranto de Poeta”. A música exalta a Mangueira onde ele criou raízes e conheceu geniais sambistas que nortearam sua trôpega trajetória de brilho infindo.



Notícia

Não se sabe ao certo se Nelson Cavaquinho nasceu no dia 28 ou 29 de outubro, nem em que bairro. Sabe-se que ele mudou várias vezes de residência, sempre vagando com seu violão na vertical agarrado ao corpo moreno e pequeno, crispado na superfície por lisos cabelos brancos. Sem jamais se prender a nada, Nelson vivia sob a égide do momento ao mesmo tempo em que exalava angústias sobre a morte. Do tipo que não se importava com bens terrenos, era seu costume distribuir o dinheiro entre doses generosas de bebida e esmola a amigos. Por conta desse hábito, passava dias sem voltar para casa, e desfilava sua liberdade lisonjeira na Praça Tiradentes, vendendo samba em troca de guarida. Desse comportamento errático, nasceram casos folclóricos do andante boêmio. Milton Amaral conta que certa vez Nelson Cavaquinho vendeu tanto uma música, que o mesmo samba tinha 16 autores. Eduardo Gudin afirma que quando o apresentador de um programa de rádio perguntou a Nelson quais eram seus planos, ele respondeu distraído: “Meus planos? O Gudin vai passar aqui para me pegar e vamos beber no Bar do Alemão”. E o próprio Nelson contava que em uma madrugada quando sonhara que ia morrer ás três da manhã, acordou e adiou os ponteiros do relógio, que já marcavam quinze para as três. Dizia ele: “Nessa eu não vou”. Essas notícias que circulavam sobre Nelson revelavam uma personalidade oposta àquela que era exposta em suas canções. Nelson Cavaquinho era uma figura complexa, capaz de criar sambas de contenção religiosa em meio a pileques e orgia. “Notícia”, por exemplo é mais uma parceria sua com o obscuro Carlos Zéfiro, que assina sob o pseudônimo Alcides Caminha, além de Norival Bahia. A música lançada por Roberto Silva em 1955 e regravada por Nelson em 1977, no disco intitulado “Os Quatro Grandes do Samba”, que dividiu com Guilherme de Brito, Candeia e Elton Medeiros, traz as entranhas de um relacionamento entremeado por traições e amadurecimento.



Palhaço

No ano de 1951, a cantora Dalva de Oliveira, no auge de sua carreira, gravou a composição “Palhaço” de um ainda desconhecido Nelson Cavaquinho, que trazia na parceria os nomes de Oswaldo Martins e Washington Fernandes. Àquela altura, o violonista que abandonara o instrumento que dera-lhe o apelido, para empenhar uma arma mais suntuosa para seus cabelos brancos, havia sido gravado por Ciro Monteiro, Alcides Gerardi e Roberto Silva. Mas foi a gravação de Dalva que rendeu para Nelson seu maior sucesso até então. Na música, ele repetia o personagem que apareceria com freqüência em suas canções, o homem que teme a morte, o infeliz que agarra-se ao sofrimento, o palhaço que abandona o palco pra poder chorar.

Dona Carola

Os versos de uma das mais tocantes músicas de Nelson Cavaquinho deram a deixa perfeita para que em 1985, Cristina Buarque e Carlinhos Vergueiro pudessem arquitetar as matizes de “Flores em Vida”, disco em homenagem ao sambista que trazia as participações de Chico Buarque, Paulinho da Viola, João Bosco, Beth Carvalho, Toquinho, além do próprio Nelson cantando. O álbum, lançado um ano antes da morte do homenageado, foi recebido com festa na quadra da Mangueira, e trazia entre diversos sucessos, músicas menos conhecidas como “História de um Valente”, onde Nelson citava Noel Rosa, e “Pecado”, música que ele dividiu a autoria com Ligia Uchoa, mulher por quem se apaixonou ao encontrá-la sem teto na praça Tiradentes e de quem tatuou o nome no ombro direito, rendendo-lhe também outro samba “Tatuagem”. Em outra faixa que se tornou menos conhecida, Chico Buarque canta “Dona Carola”, partido-alto que põe à tona o lirismo espirituoso de Nelson Cavaquinho.



Juízo Final

O reconhecimento à obra de Nelson Cavaquinho começou a se dar de forma mais intensa na década de 60, embora ele mesmo não demonstrasse preocupação com isso. A partir das gravações de Ciro Monteiro, Nara Leão e Elizeth Cardoso, outros nomes passaram a se associar ao de Nelson, a exemplo da mangueirense Beth Carvalho, com quem ele participou do Projeto Pixinguinha em 1978, e da portelense Clara Nunes. Em 1970, ele próprio ganhou a oportunidade de gravar suas músicas em um disco que levava seu nome, lançado pelo selo Castelinho, que logo iria falir, tendo o registro que ser relançado em 1974 pela Continental. Nessa gravação, Nelson era entrevistado pelo jornalista Sérgio Cabral, a cronista Eneida e o apresentador Sargentelli, além de ser anunciado por Elizeth Cardoso e acompanhado por Altamiro Carrilho. Dois anos depois, Nelson lançou seu segundo LP, através da “Série Documento” da RCA Victor. E em 1973, seu derradeiro registro solo, onde cantava pela primeira vez ao lado do parceiro eterno Guilherme de Brito, com produção de Pelão, levado ao mercado pela Odeon. Nesse último, Nelson Cavaquinho tocava pela primeira vez em disco o instrumento do apelido. Com seu nome bastante consolidado no mercado, Clara Nunes lançou no seu álbum “Claridade” de 1975, a música esperançosa de Nelson que decretava a chegada do sol no seu horizonte, a vitória do bem sobre o mal, a luz a brilhar nos corações. O amor será eterno, era o seu “Juízo Final”.



Cuidado com a outra

A primeira cantora a realizar um trabalho apenas com músicas de Nelson Cavaquinho foi a alagoana Telma Soares, em seu disco intitulado “Telma Soares interpreta Nelson Cavaquinho”, com produção de Stanislaw Ponte Preta e arranjos de Radamés Gnatalli. O álbum saiu em 1966, e contava pela segunda vez em disco com a participação de Nelson, ao distribuir sua voz pitoresca em canções como “Rei sem trono”, “História de um valente” e “Cuidado com a outra”, essa uma sátira bem humorada que usava o pretexto do dia das mães para se perdoar a mulher amada. Mais tarde, o sucesso da canção veio através da gravação de Chico Buarque, em 1974.

Vou partir

São inúmeras as histórias que contam de parceiros fictícios de Nelson Cavaquinho, que nunca existiram como compositores, mas apenas como ajudantes diante dos arroubos anárquicos do poeta. Nelson Cavaquinho seguia seus ímpetos, e assim ia colecionando parceiros, amigos e mulheres. A última delas foi Durvalina, trinta anos mais nova, que Nelson conheceu aos mais de 50 anos de idade. Sua trajetória peculiar virou motivo para o cineasta Leon Hirszman gravar um curta-homenagem sobre ele, que saiu em 1969. Dos parceiros que teve na vida, muitos foram acompanhantes de boteco, poucos de poesia. Entre eles, destacam-se Guilherme de Brito, Carlos Cachaça, Zé Kéti, Cartola e Jair do Cavaquinho, companheiro até no apelido do sobrenome. Com Jair, Nelson criou a pérola “Vou partir”, gravada por Elizeth Cardoso em 1965, em que ele a acompanha com seu violão. Dessa vez, a despedida não era eterna, apenas enquanto durasse o carnaval.



Quando eu me chamar saudade

A dupla Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito eternizou verdadeiros petardos da poesia musical brasileira. Através das lentes de seus óculos grossos e sua voz rareando a cada novo frasco de inspiração e cachaça, Nelson Cavaquinho soube conferir à morte uma beleza intrínseca. Guilherme de Brito o acompanhou sem o mesmo alarde, mas com total compreensão nessa incessante procura da vida. A música lançada no disco solo de Nelson em 1972, foi composta anos antes pela dupla, e recebeu novos versos, que de início eram: “Eu tenho amigos, enquanto eu viver, eu tenho tudo, enquanto eu merecer, mas amanhã se eu morrer, a maior parte de meus amigos nem vem me ver”. A definitiva versão recebeu os belíssimos: “Sei que amanhã quando eu morrer, os meus amigos vão dizer, que eu tinha um bom coração, alguns até hão de chorar, e querer me homenagear, fazendo de ouro um violão”. O instinto de efemeridade do compositor era delineado nos versos finais da música, em que pedia “flores em vida”. A canção recebeu regravações de Nelson Gonçalves, Nora Ney e Noite Ilustrada, entre muitos outros. Eram os versos de nostalgia de um homem que percebeu o sofrimento e soube transformá-lo em poesia. Por mais que seus dedos belisquem as cordas do instrumento e sua voz saia desafinada, Nelson Cavaquinho caminha exultante por entre as folhas secas, passando com sua dor, emanando sua luz que já não tem cor, chama-se saudade.

"Feliz aquele que sabe sofrer" Nelson Cavaquinho



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 31/10/2010.

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