sexta-feira, 27 de maio de 2011



Rede balança a pena do pintor-poeta. Mãos do barro esculpidas n’água. Pedras de areia brincam pele bronzeada. Brincos e badulaques. O mar espreguiça em peixes verdes verdades vidas levadas trazidas pela correnteza, na harmonia Dorival Caymmi.

Marina

“Marina” conta a história do homem fragilizado diante da força sedutora da sua mulher. Inspirada num mau trato do filho pequeno de Dorival, o que viria a se tornar o cantor e compositor Dori Caymmi, então com três anos idade, que repetia ‘ to de mal com você’, quando contrariado. E foi nesse pequeno gesto infantil que Dorival percebeu que o homem contrariado tende a abolir as questões da maturidade, razão pela qual os romances são sempre difíceis, conduzidos pela volúvel emoção. Fora isso, a canção lançada em 1947 por quatro cantores diferentes, (Dick Farney, Francisco Alves, Nelson Gonçalves, e o próprio autor), rompeu com uma lenda da indústria fonográfica e marcou um costume feminino da época que veio a se consolidar nas décadas seguintes: o de se maquiarem. “Marina morena, Marina, você se pintou...”. O veredito de Dorival Caymmi contra esse tipo de artifício revela sua profunda ligação com a natureza, com as coisas em seu estado natural e integrado: “Marina, você já é bonita com o que Deus lhe deu...”



O Samba da Minha Terra

“O Samba da Minha Terra”, é a declaração de amor de Dorival Caymmi às suas raízes musicais e terrenas. Confundem-se Bahia e samba na trajetória desse fruto da boa terra que chegou ainda moço ao Rio de Janeiro, e no mesmo ano da composição, em 1940, jurou novo amor eterno: à cantora Stela Maris, sua companheira durante toda vida. O verso em forma de ditado popularizou-se tal qual algo que se prega à nossa personalidade e que se colhe no berço, nos primeiros passos dados, em terra firme ou alto mar: “Quem não gosta de samba, bom sujeito não é, é ruim da cabeça, ou doente do pé!”. Foi lançada pelo Bando da Lua como a última gravação do grupo em terras brasileiras.

Só Louco

“Só Louco” encerra quaisquer racionalidade sobre questões impalpáveis ligadas ao momento mágico do amor. Nada baseado em pensamentos bem articulados pode modificar o curso dessa direção quando o barco deu sua partida, e ele só aportará mesmo após tempestades. O único momento de se compreender essa loucura é durante sua realização, e ele imediatamente nos escapa, quando menos esperamos. O samba-canção lançado pelo próprio Dorival Caymmi em 1956 ganhou regravação primorosa de Gal Costa, em 1976. “Só louco, amou, como eu amei, só louco, quis o bem que eu quis. Ah insensato coração, porque me fizeste sofrer, se de amor para entender, é preciso amar, por que...”



Dora

“Dora” é o encantamento com o inatingível. Um samba-canção com introdução de frevo que alude à festa onde Dorival Caymmi avistou a tal rainha. Também homenagem ao Recife, presente no charme dançante da morena. A mudança de tom na melodia para incorporar a chegada suntuosa da Banda Militar e seus clarins respalda a inventividade musical de um músico que nunca estudou música, contendo-a em si. O chamado pela moça ao final da letra pressagia seu distanciamento progressivo: “Ô Dora...Ô Dora...” Lançada em 1945 por Caymmi e regravada por Nelson Gonçalves, Gal Costa, e muitos outros: “Dora, rainha do frevo e do maracatu, ninguém requebra nem dança melhor do que tu...”

João Valentão

A fachada rústica pode conter um coração sensível. É essa a constatação dos que ouvem a rotina de “João Valentão”, um homem à primeira vista bruto, mas que guarda em seu interior a capacidade de avistar a vida com admiração, nobreza e calma. É quando João abstrai a simplicidade que alcança seu grau de mais extrema beleza, numa variedade que permeia a construção desse samba de 1953, lançado por Dorival Caymmi, e que inicia num rompante de intempestividade para depois dar à luz a calmaria. “E assim adormece esse homem que nunca precisa dormir pra sonhar, porque não há sonho mais lindo do que sua terra, não há...”



Saudade de Itapoã

“É tão terna a descoberta da amizade”, dizia Caymmi sobre Zezinho, grande companheiro que o acompanhou no Rio. Era também o apelido de um dono de rede que dava “emprego àquele gente humilde” de Itapoã, praia contemplada em sua bela canção, de 1948. Apresentado à região pelo pai, também tocador de violão, piano e bandolim, além de funcionário público do estado da Bahia, Dorival morreu de amores pela região e a carregou com profunda saudade: a falta daquilo que se presenciou um dia e ainda habita, em outras cintilações. “Coqueiro de Itapoã, coqueiro. Areia de Itapoã, areia. Morena de Itapoã, morena. Saudade de Itapoã, me deixa...E joga uma flor no colo de uma morena de Itapoã”.

O Bem do Mar

“Um pescador tem dois amor, um bem na terra, um bem no mar”. O Bem do Mar de Dorival Caymmi tem andamento similar ao movimento das ondas que carregam sabores e dissabores da vida. A presença afetiva da mulher à beira da praia e seu medo de perder o marido para o outro amor, à sua frente, do qual também depende sua sobrevivência, e pode ser ele a levá-lo para sempre. “O bem do mar é o mar é o mar...” Canção praieira lançada em 1973, intitulando o estilo, característico, de Dorival Caymmi.



Maracangalha

“Maracangalha” é uma filosofia de vida. O discurso do homem livre que não se limita a condições, e enxerga tudo com naturalidade, como possibilidades viáveis. É assim o convite feito à Anália sem a imposição de ser aceito e sem o sofrimento caso não ocorra, afinal tudo é passível de acontecimento e nada é assim tão dramático. Por isso guarda uma sabedoria, acompanhado ou não da companhia pretendida. Sendo assim, “Eu vou pra Maracangalha, eu vou. Eu vou de uniforme branco, eu vou. Eu vou de chapéu de palha, eu vou. Eu vou convidar Anália, eu vou. Se Anália não quiser ir eu vou só, eu vou só, eu vou só. Se Anália não quiser eu vou só, eu vou só sem Anália mas eu vou...” Samba de 1956, sucesso do carnaval daquele ano na interpretação de Dorival Caymmi, que segundo próprio depoimento compôs de uma só vez, ao contrário do que ocorria com outras músicas.

O Mar

“O Mar” retrata a angústia e a desolação de uma vida assolada pela face trágica da natureza. Rosinha de Chica perde seu amor e a razão à vida nos braços impiedosos das águas itinerantes. Seu coro de despedida entoado frente ao algoz é o consolo de uma existência que se extinguiu com o outro. Dorival Caymmi narra a beleza destruidora da força que rompe o tempo e é capaz de impor sentimentos diversos aos que se encontram com ele. Canção de 1941, lançada por Dorival Caymmi e sua voz de trovar espumas, no encontro de céu e mar, suas cordas seu violão, n’arrebentação calma da vida.



O Vento

A essência cíclica da vida, em movimentos ondulatórios como o vento, que estimula com seu sopro a continuidade das coisas. “O Vento”, canção praieira de 1949 integra o estímulo inicial à consagração obtida. Talvez por essa razão, Dorival tenha sempre entoado suas raízes, por saber que no início delas é que se construiu a frondosa árvore que floriu no Rio de Janeiro, sempre com muitos pingos baianos. “Vamos chamar o vento, vamos chamar o vento. Vento que dá na vela. Vela que leva o barco. Barco que leva a gente. Gente que leva o peixe. Peixe que dá dinheiro, curimã.” A palavra final é repetida em ritmo folclorista. Como um mantra.

Modinha para Gabriela

Títulos não alcançam perfumes. O que se é não se altera, permanece súbito e intransponível. Assim nasceu Gabriela, assim cresceu Gabriela, alheia aos cartazes do mundo. Modinha de 1975, composta para novela da Rede Globo, a música traz em tom debochado e irreverente o esplendor da personagem. Cantada por Gal Costa e interpretada por Sônia Braga, tornou-se atemporal.



Noite de Temporal

Caymmi ambienta o clima da noite negra e medonha evocando dialetos típicos africanos, presentes na cultura baiana através do misticismo, candomblé e religiosidade. “Noite de Temporal” permanece em tempo de espera, inquietação, dúvida...e a crença no regresso do filho que enfrentou o mar. Lançada em 1940, canção praieira refletida em sombras castigadas pelo peso da chuva, foi uma das primeiras registradas por Dorival Caymmi.

O que é que a baiana tem?

O encontro com Carmen Miranda não poderia ser mais feliz e fortuito. Recém chegado ao Rio de Janeiro em 1938, foi apresentado à estrela por Braguinha e Almirante. Conquistar sua majestade teria sido tarefa árdua não fosse Caymmi um especialista, que tratou de vesti-la com os adereços que merecia. Malícia e malemolência costuram os rendados do vestido da baiana. Afinal “O que é que a baiana tem?”



Acalanto

“Acalanto” é uma canção de ninar composta por Dorival Caymmi em 1957 para sua filha Nana Caymmi, que depois viria a cantá-la com ele. Com ternura e serenidade, revela o incondicional do amor paterno. Alguém a dedicar seus amores, carinhos, cuidados, para que o existir se valha.

Das Rosas

“Das Rosas” é um elogio à beleza. Uma canção otimista que presta homenagem ao despertar das delícias. Com uma jogada de classe, Caymmi pratica caprichosa estripulia ao oferecer aos ouvidos esse samba-valsa de 1964, cantado na companhia do Quarteto em Cy e lançado em versão inglesa nos Estados Unidos, traduzido e interpretado por Ray Gilbert.



Oração de Mãe Menininha

“Oração de Mãe Menininha” é um agradecimento sincero de Dorival Caymmi à iluminação que ele e a Bahia recebem da mãe-de-santo mais reverenciada de Salvador, apregoando sua crença no candomblé. Feita em comemoração aos 50 anos da ialorixá, Caymmi afirmou que o título da canção se pronuncia na boca do povo: “de Mãe Menininha”, assim como dizem “de Santo Antônio”. Samba lançado em 1972 que marcou terreiro nas vozes de Gal Costa, Maria Bethânia e Clementina de Jesus.

Saudade da Bahia

“Pobre de quem acredita na glória e no dinheiro para ser feliz”. É com saudade do que não se compra que Caymmi confidencia um olhar nostálgico sobre a vida. Agarrado às estrelas marítimas, nunca se prendeu a algas marinhas, que pegam pelo pé e reservam somente um instante de ilusão e susto. A real presença do intocável é que conduziu seus passos em águas profundas. As rasas, ele largou para os interessados. Largado em uma rede imaginária Caymmi canta, em 1957: “Ai, ai que saudade tenho da Bahia. Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia”.



Eu não tenho onde morar

Caymmi era filho de pai tocador de instrumento e mãe que cantava em casa. Um imigrante italiano, a outra negra baiana. Durval e Aurelina. Seus filhos, Dori, Nana e Danilo, seguiram o mesmo caminho, o último se especializando na flauta, progressão do assovio, tão entoado nas introduções que levam o vento de Dorival Caymmi. Exaltando a falta para justificar presença, Caymmi compôs em 1960 um belo samba, “Eu não tenho onde morar”, onde a areia substitui a casa com todas as conseqüências. Caymmi morou na música. Mora, na música: “Eu não tenho onde morar, é por isso que eu moro na areia. Eu não tenho onde morar. É por isso que eu moro na areia. Eu nasci pequenininho, como todo mundo nasceu. Todo mundo mora direito, quem mora torto sou eu.”



Peguei um Ita no Norte

A incerteza e a insegurança que provém de um futuro que acena ao longe, no entanto próximo. É esse o mote que conduz a caravana de Dorival Caymmi rumo à nova realidade. Os desafios que se encontrarão no Rio de Janeiro não serão os mesmos que ele desvendou na Bahia, por isso ele guarda mais que lembranças, o conselho da mãe: “Meu filho, ande direito, que é pra Deus lhe ajudar”. Quando pegou um Itapé que depois ele resumiu em Ita e suspirou a despedida de Belém do Pará, Dorival Caymmi levou para si os ensinamentos de violão do pai e do tio Cici, e também as canções aprendidas de Ary Barroso, que depois ele conheceu pessoalmente e gravou disco em parceria, Vicente Celestino, entre outros. Logo, a idéia do curso de direito seria abandonada, pro bem da música brasileira. Lançada em 1945 na voz de Dorival Caymmi, “Peguei um Ita no Norte” recebeu regravação de Gal Costa.



Vatapá

Dorival Caymmi distribui todos os ingredientes típicos do “Vatapá” nos versos do samba criado por ele em 1942, e ainda adiciona um novo: a presença da nega baiana que saiba mexer. Esse samba de dar água na boca de quem o escuta, mexe com as cadeiras da nega e o paladar do baiano, temperando com camarão, pimenta, castanha do pará, gengibre e cebola, o rico cardápio musical criado pelo mestre Dorival Caymmi. É o vatapá baiano com dendê da boa terra, trazendo a influência africana e seu gosto forte para a música brasileira. Agregando valor inestimável à tradição misturada de sua gente.



Nem eu

Que o homem controle o mundo, destrua tudo, exerça poder sobre o outro. O amor escapa. Não pertence por desejo, não cai por gentileza, somente chega sem imposição. Ás vezes se estabelece, noutras, desvia. “Quem inventou o amor não fui eu. Não fui eu, não fui eu, não fui eu nem ninguém. O amor acontece na vida, estavas desprevenida, e por acaso eu também. E como o acaso é importante, querida. De nossas vidas a vida. Fez um brinquedo também.” Em 1952, Dorival Caymmi fez samba-canção sobre a incapacidade humana de escolha, ao menos, sobre o sentimento amor.

A Vizinha do Lado

“A Vizinha do Lado” é um samba com sotaque carioca em que Dorival Caymmi almeja a tentação proibida: “A vizinha quando passa com seu vestido grená, todo mundo diz que é boa, mas como a vizinha não há. Ela mexe com as cadeiras pra cá, ela mexe com as cadeiras, pra lá. Ela mexe com o juízo do homem que vai trabalhar”. Lançada em 1946 pelo próprio autor, recebeu regravações de Chico Buarque, Lúcio Alves, Vânia Bastos e Roberta Sá.



Sábado em Copacabana

Dorival Caymmi virou praça em Itapoã e chegou meio tímido ao Rio de Janeiro. Até que resolveu homenagear uma importante praia da cidade em 1952, em parceria com Carlos Guinle. Cantada por Lúcio Alves, “Sábado em Copacabana” virou autêntica dedicatória e ganhou lugar cativo no coração dos cariocas. Esbanjando o charme, Dorival recita: “Um bom lugar, pra encontrar, Copacabana. Pra passear, à beira-mar, Copacabana”.

A Lenda do Abaeté

Dorival Caymmi aprendeu em Salvador a ilustração, ao trabalhar em jornais. Aprendeu a música, ao ganhar em 1936 um concurso de carnaval. E aprendeu a vender seu peixe e ler as lendas do seu povoado. “A Lenda do Abaeté”, de 1948, reproduz o clima sombrio e tenebroso de mais uma canção praieira. Como é do feitio das composições de Caymmi, aos poucos a escuridão ilumina-se em sua beleza que se esconde detrás de espinhais folclóricos. E os corais revelam o que o olho teme enxergar. Produz impacto tão forte que é preciso coragem para se chegar lá. Um brilho ostensivo que encanta, admira e assusta. É ter inocência de criança, e ver quanto linda a lagoa é.



É doce morrer no mar

Só a morte a encerrar o ciclo da vida, admite continuação. O salgado mar pode abrigar velas doces de madeira, corações que irão se afogar no colo de Iemanjá, e descansar em novo abrigo. As águas que levam são as mesmas a trazer. Segue o curso da vida, com quebradas, remendos, com belas embarcações, segue o curso, vida. Compuseram dois velhos amigos, Jorge Amado e Dorival Caymmi, “É doce morrer no mar”, 1941. Costumavam ser confundidos. Olhos de sal, bigode de espuma. Bahia na boca. Estatura larga, porém mediana. Rio comprido que desemboca no mar e segue seu fluxo intermitente, alheio aos desfeitos dos homens, d’areia, do vento que possa lhe machucar. Segue, e se esparsa espontâneo. Cada vez mais grudado no sal dos cabelos, do corpo, da essência perene em gotas de eternidade.

“Nas ondas verdes do mar” Dorival Caymmi



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 29/05/2011.

quinta-feira, 19 de maio de 2011




O Negrinho do Pastoreio carrega suas velas, símbolo do agradecimento daqueles que perderam algo. O Urubu malandro e suas pastoras levam o samba, modinhas mineiras aprendidas em casa, numa pequena Miraí que circulou o país pelos “tempos de criança”. Para um são celebradas missas, rezas, oferendas de flores. Para o outro, realizam-se rodas de samba, serestas, cantorias e serenatas. São homens-meninos da mais alta estirpe popular, um tem o peito nu, o outro traja ternos elegantes. Ambos têm a condição de lendas, com toda a justiça por tantos feitos espetaculares. Por causa disso, são eternos: Tanto o menino escravo, quanto o outro, filho de violeiro e versejador, mais conhecido por sua assinatura em melodias e letras, Ataulfo Alves.



Errei, erramos

Filho do Capitão Severino, assim chamado o conhecido violeiro, sanfoneiro e repentista da Zona Mata de Minas Gerais, pode-se dizer que Ataulfo Alves nasceu em berço de ouro da música popular brasileira. Porque foi através do DNA paterno que aprendeu a retrucar as trovas que virariam versos, e mais tarde, clássicos. O primeiro da safra do mineiro tímido que rumara da Fazenda Cachoeira para o Rio de Janeiro pode-se dizer que foi “Errei, erramos”, na interpretação do “Cantor das Multidões” Orlando Silva, depois de alguns sucessos nas vozes de Almirante, “Sexta-feira”, Carmen Miranda, “Tempo perdido”, Floriano Belham, com “Saudade do meu Barracão”, Silvio Caldas, a valsa “A você”, em parceria com Aldo Cabral, e Carlos Galhardo, na parceria com André Filho, “Quanta Tristeza”. O samba de 1938 foi lançado quando Ataulfo já detinha certo prestígio não somente aos olhos do descobridor e padrinho Bide, da dupla com Marçal, mas de grande parte do mundo do samba. Na canção, Ataulfo utiliza duas de suas temáticas favoritas, o amor e o sofrimento, que juntos recebem um julgamento filosófico com preceitos religiosos, onde o autor divide as culpas do sentimento que não vingou: “Esse princípio alguém jamais destrói. Errei, erramos.”



Ó! Seu Oscar

A morte do pai de Ataulfo Alves veio entristecê-lo quando ele era ainda um menino de dez anos. Por essa fatalidade, teve que mudar com a mãe e os seis irmãos para a cidade e ajudar no sustento da família. Dividindo o estudo com o trabalho. Empregou-se em vários: leiteiro, condutor de bois, carregador de malas na estação, menino de recados, marceneiro, engraxate e lavrador. Quando o Dr. Afrânio Pereira o convidou a ir com ele para a capital federal não teve dúvidas, mas o que encontrou na cidade, a princípio não foi nada do que esperava. Somente a princípio, porque depois de trabalhar no consultório entregando remédios e cuidando da limpeza, encontrou-se com sambistas da mais alta nobreza. Dentre eles, Wilson Baptista, malandro convicto com quem compôs “Ó! Seu Oscar”, grande vencedor do carnaval de 1940 que contava a história do moço, o tal Oscar, gíria para patife na época, que também encontrava em casa o que não queria: o matrimônio desfeito e a esposa curtindo a orgia. Foi o segundo sucesso de Ciro Monteiro.



Leva meu samba

Ataulfo Alves encontrou o amor no matrimônio no ano de 1928, quando se casou, aos 19 anos, já morando no Rio de Janeiro, com Judite. Com ela, permaneceu por toda a vida e teve cinco filhos, dois deles, Adeílton e Ataulpho Alves Júnior, com o DNA musical no sangue. Ataulfo ingressou pra valer no samba carioca quando se tornou diretor de harmonia da escola de samba “Fale Quem Quiser”, em referência à pioneira no ramo “Deixa Falar”, sem nunca perder as raízes mineiras. Foi por essa estrada pavimentada que ele chegou até o Mr. Evans, diretor americano da gravadora RCA Victor no Brasil, pelas mãos de Bide. Depois de êxitos como compositor, somente em 1941 estreou cantando suas músicas, a primeira delas, “Leva meu samba”, contou com o acompanhamento do ainda anônimo Jacob Bittencourt, posteriormente, do Bandolim, e já prenunciava o bom gosto de Ataulfo para escolher quem estivesse ao seu redor. Mais adiante, ele formaria um casamento de incrível sucesso, com as suas pastoras, que levariam seu samba e seu recado, para todos os amores, desfeitos e iniciados, regravado por Noite Ilustrada, Jorge Aragão, Sandra de Sá, e muitos outros.



O Bonde de São Januário

Ataulfo Alves se notabilizou também por exibir exímia classe e elegância irretocável, quebrando o paradigma do sambista relegado à malandragem. Constantemente de terno bem apanhado, era figura certa na coluna de Ibrahim Sued, jornalista que elegia os mais bem vestidos, e desfilava de Cadillac amarelo, último modelo, pelas ruas do Rio de Janeiro. Os trajes eram compatíveis aos modos de Ataulfo, solícito e agradável, muito bem querido por todos. No máximo desviava-se a pagar um dinheiro para que suas músicas tocassem mais no rádio, o famoso “jabá” ou “caitituagem”, tão comum na época quanto nos dias atuais. “O Bonde de São Januário” simboliza exatamente esse comportamento nada convencional para um sambista, com o adendo de ter sido proposto o tema pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), da ditadura militar, que julgava as canções muito subversivas em razão do conteúdo exaltante à boemia. Como resposta, Wilson Baptista e Ataulfo Alves escreveram uma bela composição que rompeu as barreiras do tempo e das determinações censoras, lançada por Ciro Monteiro, outro que extrapolou a margem do esgotável. A ditadura acabou. O bonde e seus personagens permaneceram. De quebra, ganhou o carnaval de 1941.



Ai, que saudades da Amélia

Mário Lago disse a vida inteira que Amélia não era mulher submissa, mas solidária, companheira, amiga nas horas difíceis. As feministas não o perdoaram por tais liberdades poéticas concedidas: “ás vezes passava fome ao meu lado, e achava bonito não ter o que comer”. A beleza do sofrimento retratada por Mário Lago, versos, e Ataulfo Alves, música, sobre a mulher idealizada, sinalizavam na realidade a dependência da atual esposa, segundo o próprio poeta: “Você não sabe o que é consciência, não vê que eu sou um pobre rapaz, você só pensa em luxo e riqueza, tudo que você vê você quer.” Lançada no carnaval de 1942, dividiu a preferência do público com “Praça Onze”, de Herivelto Martins e Grande Otelo, e o prêmio teve que ser dividido. No entanto, “Amélia” penou para conquistar garantida assumidade na música brasileira. Foi recusada por todos os cantores as quais se ofereceu, até que o próprio Ataulfo Alves resolveu gravá-la, com a companhia de Jacob do Bandolim tocando a introdução. A trajetória da protagonista não foi das mais suaves, mas ao final, estava consagrada. E olha que Amélia existiu de verdade.



Atire a primeira pedra

Foi ao Café Nice que Mário Lago se dirigiu para comemorar com Ataulfo Alves o estouro de “Atire a primeira pedra”, samba de amor custoso escrito pelos dois compositores. O famoso reduto da boemia carioca abrigava a música como que por espontânea ligação religiosa. E eram versos religiosos que valorizavam o sucesso da composição em ritmo de penitência. Com a interpretação de Orlando Silva em 1944, foi lançada por Emilinha Borba no filme “Tristezas não pagam dívidas”. A música desfilou na boca do povo com tamanha empolgação no carnaval daquele ano que de acordo com Mário Lago foi a única vez que viu o amigo Ataulfo de “pilequinho”.

Errei, sim

O compositor Herivelto Martins, que vivia um atribulado fim de casamento com a cantora Dalva de Oliveira, com quem compôs o Trio de Ouro ao lado de Nilo Chagas, com manchetes nos jornais e escândalos sensacionalistas propagados pela imprensa, foi uma das únicas pessoas que conseguiu se desentender com o gentil Ataulfo Alves. Isso porque ele considerou os versos “Errei, sim, manchei o teu nome, mas foste tu mesmo o culpado. Deixavas-me em casa, me trocando pela orgia, faltando sempre com a sua companhia”, da música escrita pelo sambista e lançada em 1950 por Dalva de Oliveira uma ofensa e assunção de que a esposa o traía. A briga entre os dois se desfez em seguida. A canção ficou eternizada com seus versos confessionais e de contundência lamentadora.



Fim de comédia

O conjunto idealizado por Ataulfo Alves era formado inicialmente por Olga, Marilu e Alda, o trio vocal que recebeu o nome de “Pastoras”, por sugestão de Pedro Caetano, compositor de sucessos carnavalescos. Veio da festa profana a inspiração para o nome, num misto de atribuição religiosa. A denominação era como se chamava o coro feminino que acompanha o cantor principal, também conhecidas como cabrochas, muito presentes nas festas de Natal no nordeste brasileiro. E assim, Ataulfo foi feliz em sua escolha tanto quanto a interpretação de outra mulher gloriosa, a passional Dalva de Oliveira, que cantou de sua autoria em 1952, o samba doloroso “Fim de comédia”, lamentando ou celebrando, essa sim, com facadas agudas no peito como sua voz, o triste fim do casamento tortuoso com o compositor Herivelto Martins. Um marco revivido por vozes de firme intensidade, a exemplo de Elizeth Cardoso e Ângela Rô Rô: “Este amor quase tragédia, que me fez um grande mal. Felizmente essa comédia, vai chegando ao seu final.”



Pois é

Ataulfo Alves ingressou em diversas searas do ramo artístico e conquistou a admiração dos mais variados tipos. Fundou e tornou-se diretor da União Brasileira dos Compositores, que lutava pelos direitos autorais, criou a “Ataulfo Alves Edições, para editar suas próprias músicas e foi homenageado em quadros do pintor modernista brasileiro José Pancetti. O samba “Pois é”, lançado em 1955, gerou uma dupla repercussão na carreira de Ataulfo. Mirabeu Pinheiro, conhecido compositor, co-autor do sucesso carnavalesco “Turma do Funil”, andava descontente com as repreensões de Ataulfo por conta de direitos autorais, e respondeu a composição se passando pela morena fujona da letra, intitulado “A Morena Sou Eu”. O compositor mineiro, como poucas vezes se viu, não ficou quieto e resolveu ser desbocado, respondendo com outro samba, “Eu nada lhe perguntei”. O bate-boca durou mais uma música de Mirabeu, “Arria a Trouxa no chão”, sem satisfação de Ataulfo Alves, e os dois voltaram às pazes depois. Por outro lado, Pancetti se encantou com a composição, dedicando ao autor um quadro de mesmo nome, respondido à altura com outra preciosidade de seu repertório, “Lagoa Serena”, com J. Batista, que também terminou em pintura. Como ilustram os versos de “Pois é”, “a maldade dessa gente é uma arte...”. Que boa arte praticou Ataulfo.



Meus tempos de criança

O menino Ataulfo teve infância humilde, da qual soube recolher a riqueza dos pequenos gestos, as pequenas luzes que brilham sob o olhar inocente de uma criança. Essa essência, Ataulfo levou para a fase madura de sua vida, e se recordou com alegria e saudade, retratada no estilo dos versos presentes em toda sua obra realizada no Rio de Janeiro, mas com um pé fundo numa Minas interiorana, dolente, toada e rural. “Meus tempos de criança” é uma homenagem a todos que preservam os sons da matriz, “a professorinha que ensinou o bê-a-bá”, as travessuras e o primeiro amor, Mariazinha. “Eu era feliz e não sabia”. Esse arrependimento inevitavelmente tardio crava uma ponta de angústia na canção de Ataulfo Alves, composta em 1956, cobertor macio para todos aqueles de coração aguado.

Mulata Assanhada

Ary Barroso determinou em 1950 que o maior compositor popular brasileiro era seu conterrâneo mineiro, Ataulfo Alves. Seis anos depois, o prestigiado sambista lançou obra prima de sua autoria, outra delas, “Mulata Assanhada”. Lançada por Elizeth Cardoso, a canção corre no tempo esperto e sinuoso das curvas da mulata em questão, regravada mais tarde, sem demérito nenhum para a primeira gravação, pela personificante Elza Soares, tornado-se emblema de sua figura: “Ô mulata assanhada, que passa com graça, fazendo pirraça, fingindo inocente, tirando o sossego da gente.” A incorreção política de Ataulfo aparece ao recorrer aos provocantes versos: “Ah mulata se eu pudesse, e se meu dinheiro desse, eu te dava sem pensar, essa terra, esse céu, esse mar. Ela finge que não sabe que tem feitiço no olhar. Ai meu Deus, que bom seria, se voltasse a escravidão, eu comprava essa mulata e prendia no meu coração, e depois a pretoria é que resolvia a questão!”



Você passa, eu acho graça

Se em suas tumultuadas presenças no jornalismo e na política, Imperial podia ser apontado por alguns como picareta, apresentando doses nada convencionais de escracho, no trato com a musicalidade ele cultivava soberba engenhosidade. Foi após ficar conhecido como grande referencial do rock solto da Jovem Guarda e da Pilantragem que ele se aventurou pelo prolífico campo do samba em homenagem a um desamor. Aparceirando-se com ninguém menos que o gentleman das palavras e melodias Ataulfo Alves ele se tornou co-autor da revigorante “Você passa, eu acho graça”, que em 1968 mandou um recado à flor que perdeu o encanto: “E agora, você passa, eu acho graça. Nessa vida tudo passa, e você também passou. Entre as flores, você era a mais bela. Minha rosa amarela, que desfolhou, perdeu a cor”.

Laranja madura

Os passos mineiros de Ataulfo Alves ganharam o mundo pela primeira vez em 1961, a convite do parceiro de Luiz Gonzaga, o doutor do baião Humberto Teixeira, como parte de uma caravana de divulgação da música brasileira na Europa. Cinco anos mais tarde, rumou para Senegal, e em Dacar representou o país no I Festival de Arte Negra. Também em sua terra, Ataulfo era louvado, virando nome de rua. Ao todo, ele deixou cerca de 400 músicas gravadas, dentre elas, “Laranja madura”, de 1967, samba que desconfia da bondade alheia ao fazer comparação com uma “laranja madura na beira de estrada tá bichada, Zé, ou tem marimbondo no pé”, antigo ditado do povo recolhido por Ataulfo Alves. Desconfiança mineira que já não existia à essa altura, nem em praticamente todo seu percurso artístico, com o cidadão informalmente honorário de Miraí.



Na cadência do samba

O cantor e compositor Ataulfo Alves era também violonista, cavaquinista e bandolinista, ou seja, um músico de primeira linha. Por tais qualidades inquestionáveis é que ficou em evidência até o fim de sua vida, mesmo com o advento da bossa nova e da jovem guarda em detrimento de seu particular samba, assim chamado pela intimidade que demonstrava nesse trato. Em 1962, compôs uma música com Paulo Gesta, interpretada por Elizeth Cardoso, de nome idêntico à outra que ficaria conhecida como fundo musical do futebol, assim chamada “Na cadência do samba”, em menção à despedida que ele desejava para si. Ficou marcada na memória da música popular brasileira a morosidade arrastada da melodia que encanta os versos alentadores: “Sei que vou morrer, não sei o dia. Levarei saudades da Maria. Sei que vou morrer não sei a hora. Levarei saudades da Aurora. Quero morrer numa batucada de bamba, na cadência bonita de um samba.” A cadência que seu autor deixou para a posteridade, como legado in contest de sua obra monumental, exposta nas melhores confraternizações e festejos musicais desse país chamado Brasil, rico de lendas para ninguém botar defeito.

“Leva meu samba, meu mensageiro, esse recado, para o meu amor primeiro” Ataulfo Alves



Raphael Vidigal Aroeira

sexta-feira, 13 de maio de 2011




O homem de cachimbo vem com lagarto no ombro, cobra enrolada nos pés, lagartixa na palma da mão. Arrisca-se quem resumi-lo cientista. Ele também o é, especialista em samba sem diplomacia. Se puder imaginá-lo, pense na pintura de Magritte, nas experimentações de um Einstein, no avanço das tropas de Napoleão. E terás o retrato abstrato do erudito mais popular brasileiro! Paulo Vanzolini.

Ronda

“Para mim acorde é que nem latir para cavalo”. O que não o impede de falar a língua dos músicos, através da poesia e da inseparável boemia. Em suas experiências noturnas farreando ou mesmo vigilante como cabo do exército, Paulo Vanzolini retirou o essencial para sua pequena, porém qualitativa, produção de sambas. Um dos mais emblemáticos nasceu em 1951, e só foi chegar ao disco dois anos depois, por acaso do destino e ingenuidade de Inezita Barroso, que não sabia que disco possuía lado B. Para ela então, amiga do casal Vanzolini, foi destinada a felicidade de lançar o compositor-cientista, sem a mínima repercussão, que só veio quando a canção já era cantada há 14 anos por boêmios inveterados, na gravação em 1977 de Márcia: “de noite eu rondo a cidade, a te procurar, sem encontrar...”. Mais um caso passional onde o amor se envolveu com as páginas de sangue do jornal na manhã seguinte.



Volta por cima

“Samba é que nem osso, uma vez que tá na rua, vai na boca de qualquer cachorro”, riu-se Vanzolini, quando perguntado por Zé Henrique o que fazer com a música que este havia ganhado, e que por briga com a gravadora, não poderia gravá-la. Foi então que “Volta por cima” encontrou Noite Ilustrada, e por três semanas consecutivas angariou o primeiro lugar nas paradas de sucesso do ano de 1962. Notícia que seu autor só veio a ter quando voltou de sua viagem à Amazônia, entretido com os afazeres da zoologia, e ouviu no rádio sua exaltação para aquilo que ficaria conhecido no dicionário Aurélio da Língua Portuguesa como “ato de superar uma situação difícil”, cantada com emoção ímpar por Elza Soares: “Chorei, não procurei esconder, todos viram, fingiram, pena de mim não precisava, ali onde eu chorei qualquer um chorava, dar a volta por cima que eu dei, quero ver quem dava.” Para ele, a parte mais importante da letra não está no título, mas no verso ‘reconhece a queda’.



Samba erudito

Só mesmo o irônico Paulo Vanzolini, com toda sua robustez ranzinza, para misturar em uma canção popular Pôncio Pilatos, Santos Dummont, Olavo Bilac e São Pedro, resultado de sua formação intelectualizada, como ele mesmo afirma. O “Samba erudito” foi lançado em 1967 por Chico Buarque.

Chorava no meio da rua

Paulo Vanzolini descamba a maioria das gravações feitas com seu repertório. Delineia que Maria Bethânia é “muito mais uma declamadora do que uma cantora”, e que a suposta homenagem de Caetano Veloso ao introduzir partes de “Ronda” em “Sampa”, está mais para plágio. No entanto, o compositor-cientista rende-se ao charme do canto de Cristina Buarque, que desaforada, teve a audácia de modificar uma composição sua, fato que segundo ele próprio, o deixa bastante irritado. Só que dessa vez não foi o caso, Vanzolini acatou a sabedoria da irmã mais nova de Chico Buarque, segundo Cartola, “cantora pra compositor”, que entoou em 1967 os versos do samba assumido: “Se eu tivesse que chorar, chorava no meio da rua...”



Capoeira do Arnaldo

Samba para Paulo Vanzolini sempre foi sinônimo de diversão, brincadeira, e não haveria razão de sê-lo não fosse pelos amigos, pela boemia, embora as horas de talhar os versos lhe fossem bastante desgastantes. Valia a pena pelo amor às palavras, jamais pela intenção de gravá-las em disco, ganhar dinheiro, fazer disso uma profissão. Para esse trato, cabia-lhe a zoologia, paixão que nascera com ele, e aflorou em passeio de bicicleta pelo Butantã. “Capoeira do Arnaldo” surgiu de uma provocação irritada de Arnaldo Horta, grande amigo, que não concebia o fato de Carybé, um gringo argentino apaixonado pelo Brasil, contratado pelo governo da Bahia para fazer uns desenhos populares na cidade, saber mais de candomblé do que os brasileiros. Foi isso que motivou Paulo Vanzolini a compor a capoeira, um rugido de mamífero que se transformou em pássaro a voar sem ninho. A história do nordestino que migra de sua terra em busca do destino. Puro folclore realista.



Maria que ninguém queria

Na década de 50, com o aperto financeiro batendo à porta, Vanzolini, pesquisador do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, logo se enturmou com os bambas da TV Record. Foi ele o responsável por domar a fera doce Aracy de Almeida, e resolver a impossibilidade da cantora em decorar as letras, transformando-a em dona de botequim, e colocando uma máquina registradora à sua frente, com tudo o que ela precisava cantar, naturalmente. Nessa mesma década, ele produziu junto com Raul Duarte o primeiro Festival da Velha Guarda, que reergueu Pixinguinha, João da Baiana, Donga, e muitos outros. Já completamente entrosado no meio musical, em 1974 foi a sua vez de receber homenagem, através do amigo Marcus Pereira, dono da gravadora de mesmo nome, e dos cantores Paulo Marques e Carmen Costa, que sambaram, entre tantas, a irresistível “Maria que ninguém queria”, composição que esbanja o humor afiado e incorreto de Paulo, destilando as ironias vorazes sobre um caso conjugal cheio de convenções absurdas e incrivelmente aceitas com naturalidade: “Maria que ninguém queria, eu resolvi reformar...Orgulho eu não tenho, mas sou homem demais pra 50%!”



Mente

“Para cantar nos meus discos é obrigatório ter duas qualidades: ser meu amigo e ter bom caráter”. É essa afirmativa que enchem as obras dedicadas à Paulo Vanzolini de músicos consagrados e ilustres desconhecidos do grande público, com a realeza de gozarem do prestígio da amizade do compositor. Luiz Carlos Paraná comandou com ele o famoso bar “Jogral”, um dos primeiros de São Paulo dedicado à música, e foi o responsável pelo abatimento gradual de Vanzolini após sua morte, em 1970. Adauto Santos tornou-se o responsável por levar às notas o canto que ele guardava na cabeça. Poucos outros tiveram tamanho privilégio, dentre eles, Eduardo Gudin, que em 1978 dividiu duas composições com o compositor-poeta, “Longe de casa”, e “Mente”, reiterada por Clara Nunes no mesmo ano, com a acentuação perfeita das contradições fetichistas: “Mente, ainda é uma saída, é uma hipótese de vida, mente, sai dizendo que me ama...Pois na mentira, meu amor, crer eu não creio, só pretendo que de tanto mentir, repetir que me ama, você mesma acabe crendo”



Na boca da noite

O elo entre Paulo Vanzolini e a música chama-se poesia. O que não é difícil perceber, basta constatar a inaptidão do compositor com qualquer instrumento de cordas, sopro ou batuque, embora ele os adore. Nunca soube reparar “as frescuras” de João Gilberto, amigo que conheceu moço. Em sua juventude lançou “Lira”, livro de poesias. Depois “Tempos de Cabo”, com o mesmo sumo poético, recolhido dos tempos de exército. “Na boca da noite”, é exemplo bem acabado dessa característica de sua pessoalidade, embora o próprio advirta que ela não estava pronta quando o apressado Antônio Pecci, apelidado Toquinho, resolveu lançá-la. Senão teria tirado o sétimo lugar no II Festival Internacional da Canção promovido pela TV Globo, e não o oitavo, revigora sua picardia. Seja como for, as imagens do samba de 1967, são de beleza poética, e talvez, justamente, por estarem inacabadas sob o olhar do poeta. “Nuvem alta em mão de vento é o jeito da água voltar. Morena, se acaso um dia tempestade te apanhar, não foge da ventania, da chuva que rodopia, sou eu mesmo a te abraçar...Vi um rosto na janela, parei na beira da estrada, cheguei na boca da noite, saí de madrugada...”



Cravo branco

Paulo Vanzolini atesta-se como típico reprodutor em versos das características e da sintaxe paulistana. Nascido na capital do estado é alardeado como um dos grandes nomes musicais da cidade, posto ocupado ao lado de outra sumidade, de quem também foi amigo, o emblemático Adoniran Barbosa. Mas não se esquece de avisar que sua formação é fruto de gênios ouvidos através do rádio carioca: Ary Barroso, Lamartine Babo, Noel Rosa, Mario Reis, Ismael Silva. Ele, inclusive, morou um tempo no Rio de Janeiro em sua infância. “Cravo branco”, lançada por Adauto Santos em 1967 é história que poderia ter acontecido em qualquer lugar do Brasil, mas lhe ocorreu ao escutar com atenção o relato de sua empregada. Pronta a inspiração para recitar o crime cometido por ciúme, embalsamando o pobre com o cravo branco na mão, alento em sua despedida.



Juízo Final

“Eu sou puritano mesmo, sempre fui. Eu tenho 60 músicas e nunca usei a palavra malandro.” Esse rigor estilístico e conceitual de Vanzolini, nunca o impediu de tratar com senso de humor áspero temas de natureza recalcada. A religiosidade foi uma das escolhidas como alvo de seu deboche bem construído. “Juízo Final” é uma satírica composição que reproduz até os toques de harpa tocada pelo recém-aceito anjinho de sua pessoa, que olha para baixo e ri-se da desgraça alheia, “a ingrata que hoje trabalha de salsicha, espetadinha no garfo, satanás fritando a bicha...ô Demônio capricha!”. De uma incorreção saborosa e bem trabalhada por Vanzolini. O humor, quando bem empregado, sem conotações morais e no entretanto, sem fazer concessões popularescas, constitui, sem dúvida nenhuma, um dos baluartes da inteligência.

Leilão

Paulo Vanzolini considera “Leilão” seu samba mais acabado, pronto, intelectualizado. Cantado pela primeira vez em disco por Luiz Carlos Paraná em 1967 rebobina o arrependimento do homem que não arrematou aquilo que desejava, sem revelá-lo, recapeando o caminho de sua vida com “olho de cobra mansa” e “boca de fruta brava”, elementos tradicionalmente folclóricos.



Praça Clóvis

A primeira experiência radiofônica de Vanzolini aconteceu no programa “Consultório Sentimental” apresentado por Cacilda Becker. A primeira experiência musical foi recitando versos nos regionais da universidade. A primeira com os animais para os quais dedicou seus estudos de zoólogo, e tornou-se um dos mais respeitados na área, foi visitando o Butantã. A primeira com poesia talvez tenha sido a “Lira”. Mas não se pode afirmar com exatidão, apenas supor, pois muitos desconfiam que em seu DNA já estavam absortas essas sementes que trouxeram à tona o homem de cachimbo, especialista em samba sem diplomacia, inspirado em fatos pitorescos para compor sua obra: como os batedores de carteira que deram vida à “Praça Clóvis”, samba lançado em 1967 por Chico Buarque, concentrador da ironia do compositor para agradecer ao assalto responsável por levar de sua carteira a foto da mulher desprezada.

“Do povo, de cada um pessoalmente, eu não gosto, mas do povo em geral eu gosto muito.” Paulo Vanzolini



Raphael Vidigal Aroeira

domingo, 1 de maio de 2011




O samba recheado de quebradas marcou a vida irregular do compositor. O rebolado das baianas o colocou no chão. De queixo caído ele assistiria ao rebuliço em torno da bossa nova que ele próprio antecipara, não tivesse partido tão cedo. Sem saber, o mineiro que alimentou fama e discórdia no Rio de Janeiro foi um precoce e um privilegiado. Por ter assistido de perto à criação da Estação Primeira de Mangueira e ter convivido com grandes bambas da malandragem teve o prumo certo para tirar melodia e letra do mel que brotava na sua frente. Nem sempre doce, o sambista Geraldo Pereira foi um prodígio, reconhecido mesmo em sua brevidade, como talvez nunca tivesse sido não fossem as tempestades em sua vida.

Falsa baiana

Geraldo Pereira já perseguia o sucesso há algum tempo quando seu samba estourou na praça, em 1944. O começo da história data de um carnaval em que Geraldo estava no Café Nice, um dos seus pontos prediletos, e viu adentrar o recinto a esposa do compositor Roberto Martins, toda fantasiada de baiana e com uma desanimação de dar dó, ao que ouviu a fala do marido: “Olha aí a falsa baiana”, prontamente começou a matutar em sua cabeça o novo samba sincopado. Ao cantá-lo para Roberto Paiva embolando as letras, já alto depois de umas e outras, recebeu um não do cantor, que se surpreendeu positivamente ao ouvir a música na voz de Ciro Monteiro ecoar nas rádios. A baiana de Geraldo Pereira deixou a mocidade louca! A música foi regravada na década de 70 por Gal Costa, repetindo o êxito que a consagrou.



Sem compromisso

O calado menino Geraldo, que herdara o nome pelo qual ficaria conhecido de uma tia que o manteve sob seus cuidados quando a família foi para o Rio de Janeiro, chegou à capital federal por volta dos 12, 13 anos. Inicialmente com o intento de ajudar o irmão Mané Araújo numa tenda que esse mantinha no morro de Mangueira, acabou desvirtuando seus passos e indo de encontro ao samba. Antes, porém, arrumou emprego como motorista de caminhão de lixo, e seguiu nesse batente até o fim da vida. Acusado de ter um temperamento difícil tornou a público a título de lenda ou realidade a fama de que descumpria compromissos, dava calotes em seus companheiros e até abandonara a mãe no leito de morte para curtir a orgia, o que acarretou uma séria briga com o irmão mais velho. Mas Geraldo Pereira também sabia acusar, como fez em 1944 em parceria com Nelson Trigueiro: “Você só dança com ele e diz que é sem compromisso, é bom acabar com isso...”. Lançado pelos Anjos do Inferno o samba recebeu celebrada regravação de Chico Buarque.



Bolinha de papel

João Gilberto conta que foi Geraldo Pereira um dos inspiradores da batida com a qual ele caracterizou a bossa nova. O sambista bom de bossa, aliás, vivia jogando seu charme para cima das cabrochas de seu convívio. Numa dessas acabou se dando mal, engravidou a moça e foi obrigado a casar, mas nada que impedisse suas peregrinações galantes. Na contagiante “Bolinha de papel”, lançada pelos Anjos do Inferno em 1945, ele declara seu amor capaz de garantir até sossego para a tal Julieta. A música recebeu regravações de Miltinho e do próprio João Gilberto.

Pisei num despacho

Geraldo Pereira migrou de Mangueira depois de conflitos com o irmão Mané, importante e temido na região por acumular os cargos de dono de tenda e funcionário da Central do Brasil, o que lhe garantia alto poderio econômico. Antes de deixar o morro, ele conheceu Cartola e Carlos Cachaça, que fundaram mais tarde a escola de samba mais famosa do local, e teve aulas de violão com Aluísio Dias e Alfredo Português, padrasto de Nelson Sargento. No ano de 1947 ele já desfrutava de certa imponência no meio do samba por conta de gravações recentes que obtiveram alta cota no gosto popular. Nesse mesmo ano, lançou outra delas, que versava sobre os infortúnios de um sujeito que atribuía isso ao fato de ter “pisado num despacho”. Geraldo falava na música sobre a gafieira, um dos ritmos que o ajudaram a inventar o “samba de teleco-teco.” A música foi lançada por Ciro Monteiro e recebeu regravações de Roberto Silva, Jackson do Pandeiro e Zeca Pagodinho.



Chegou a bonitona

Dizem que era difícil fisgar o coração de Geraldo Pereira, embora e por isso mesmo fosse ávido amante de mulheres, mas não se contentava com uma só. Coube a Isabel Mendes da Silva a proeza de capturar o coração do sambista, para quem compôs diversos sambas, mas também dedicou brigas e complicações típicas de seu estilo de vida. Apreciador, esse sim, inveterado da bebida, com predileção pelo conhaque de alcatrão, cachaça e cerveja, não podia ver passar uma bonitona que seus olhinhos já meio bêbados brilhavam de alegria. Talvez tenha sido essa uma das inspirações para ele compor junto com José Batista, “Chegou a bonitona”, gravada em 1948 com enorme sucesso por Blecaute, depois de dada a Ciro Monteiro e retirada pela demora da gravação, o que gerou briga entre o cantor e compositor que resultou em quebra de relação por seis anos. Na posteridade, sua divulgação ficou a cargo da voz cadente de Luiz Melodia.



Pedro do Pedregulho

Embora muito conhecido pelas confusões que propagou ao longo da vida, geradas na maioria por conta de bebida e mulheres, Geraldo Pereira era esforçado divulgador de seu trabalho e também de outros artistas, o que lhe garantiu parcerias com Moreira da Silva (“Na subida do morro”) e Wilson Batista (“Acertei no Milhar”). Na música “Pedro do Pedregulho, o sambista retrata com sensibilidade uma realidade que poderia muito bem ser a sua, tivesse ele dado chance para a calmaria. Mas a poesia impetuosa de Geraldo não permitiu que ele fizesse concessões desse tipo. Ele mesmo lançou como cantor o samba, em 1950.

Ministério da Economia

“Ministério da Economia” era supostamente uma música para fazer afagos em Getúlio Vargas, então presidente do Brasil. Mas o samba não ficou datado justamente pelo caráter irônico que se pode atribuir a ele, ao se constatar o protagonista esbanjando o fato de não precisar “comer mais gato”. A música em parceria com Arnaldo Passos foi novamente lançada pelo próprio Geraldo Pereira, e recebeu regravação do portelense Monarco.



Escurinha

Geraldo Pereira criou em 1952 uma interessante personagem do cancioneiro brasileiro. Ele próprio já tinha experiência nessa área ao trabalhar como ator numa peça de teatro que escreveu e dirigiu, e ao aparecer em filmes interpretando a si mesmo, como no “Brasil na batucada”, de Luiz Barros, em que proclamava: “Não acabou a Praça Onze não!”, por idéia de Herivelto Martins. Essa habilidade, portanto, de observar personalidades típicas do morro, já havia sido demonstrada por ele diversas vezes, mas nunca com tanta desenvoltura quanto no samba “Escurinha”, em parceria com Arnaldo Passos. Na história, Geraldo desenvolve o embate entre o malandro apaixonado e a donzela requisitada: “Escurinha tu tem que ser minha de qualquer maneira, te dou meu boteco, te dou meu barraco, que eu tenho no morro de Mangueira, comigo não há embaraço”. O cantor fez questão de lançar a preciosidade, mais tarde revigorada por Cartola, João Nogueira, Jorge Veiga, Zizi Possi, e outros.

Cabritada malsucedida

Geraldo Pereira teve trajetória errática, não sabendo ao certo qual caminho lhe pertencia até descobrir o samba. Além disso, nunca largou certos vícios que acalentavam suas composições. Nascido em Juiz de Fora, no interior de Minas Gerais, tinha por incerto o nome do pai, embora a mãe Clementina Maria Thedoro lhe afirmasse ser Sebastião Maria, seu segundo marido, com quem teve mais dois filhos além de Geraldo. Os outros eram filhos de Antônio Manuel de Araújo. Apesar dos pesares, pode-se afirmar que Geraldo Pereira foi bem sucedido no intento de tornar-se sambista de renome, embora mais celebrizado após sua passagem por essa vida. Já em 1953, o mote para a linhagem de fino trato do compositor era uma fatídica “Cabritada malsucedida”, em que ele embalava as enrascadas pelas quais passaram os convidados da festa que acabou em caso de polícia. Lançada por ele mesmo, ganhou regravações de Miúcha e Luiz Melodia.



Escurinho

A última música de Geraldo Pereira, lançada em 1955, na voz do “padrinho” – assim ele o chamava – Ciro Monteiro, representa em síntese o universo primordial do compositor, com a batida descompassada e a princípio mal entendida que ele confraternizou com o samba e a bossa nova. Naquele ano, rezaria a lenda propagada, entre outros, pelo próprio autor do ato, ele seria abatido pelo capoeirista pernambucano João Francisco dos Santos, depois de provocar repetidas vezes o Madame Satã, aos 37 anos. No entanto, há quem discorde dessa afirmação, e diga que a causa da morte foram os problemas intestinais que Geraldo sempre carregou, agravados pela bebida e pelo soco. Sobre isso, não há pareceres definitivos nem que estabeleçam o fim de todas as dúvidas, mas o legado de Geraldo Pereira, esse sim, é inquestionável, basta uma ouvida de canto de orelha em “Escurinho” - companheiro da “Escurinha” também criada por ele - gravado com maestria por Roberto Silva, somente para uma pequena idéia do que se costuma falar a respeito do inventivo compositor, tanto desordeiro quanto talentoso.

"Um compositor tem que saber música, não ser que nem eu, que não sei de nada. Eu faço porque tá dentro de mim." Geraldo Pereira



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 01/05/2011.




A doença aliada à origem africana da avó rendeu-lhe o apelido inusitado. As baixarias ouvidas em casa pelo choro do pai e dos amigos deram a ele uma flauta mágica. O ouvido desaforado fez com que se transformasse em maestro, inepto e aclamado: Villa-Lobos, Ernesto Nazareth, Jacob do Bandolim, todos foram unânimes em aplaudi-lo. As vaias vieram quando excursionou com os Oito Batutas para ver o mundo. E se tornou um brasileiríssimo arranjador influenciado pelo jazz americano e os ritmos africanos. As dificuldades financeiras, a bebida e o fumo, o presentearam com um sax. E todas essas rasteiras terrenas ajudaram a compor o gênio que transcendeu as barreiras do tempo: Carinhoso, Lamentos, Um a Zero, Rosa. Pixinguinha, música semente.



Rosa

Sorte para a música brasileira que o garoto Alfredo da Rocha não obedecia aos pais quando era mandado para a cama. Foi assim, ouvindo escondido a festa do choro em sua residência que ele obteve inspiração para compor “Lata de leite”, aos 12 anos, em homenagem aos músicos que chegavam bêbados pela manhã e bebiam o leite de outros nas portas das casas. Pouco depois, aos 17, o menino deu prova da importância que viria a ter no cenário musical, ao compor “Rosa”, uma valsa de 1917 que ganhou versos de Otávio de Souza, “um mecânico muito inteligente que morreu novo”, segundo o próprio Pixinguinha. A gravação antológica realizada em 1937 por Orlando Silva realça o tom de encantamento com o inatingível da melodia e todo o romantismo da letra.



Sofres porque queres

Pixinguinha era o caçula de uma família de 14 irmãos, incluindo os dois casamentos de sua mãe. O pai tocava flauta nas horas vagas e incentivou o “menino bom” quando viu sua afinidade com o instrumento. Primeiro ele tocou cavaquinho, depois foi ter aulas de sopro com Irineu de Almeida. Com 13 anos, já estava em disco. Suas primeiras gravações autorais aconteceram em 1917, com “Rosa” e “Sofres porque queres”, um tango em parceria com Benedito Lacerda gravado por Isaurinha Garcia em 1949. Um choro sofrido e esperançoso.



Os Oito batutas

Pinzindim, como era chamado pela família, demonstrava toda a habilidade na flauta ao incorporar improvisos que o fariam famoso em todas as rodas de choro. Em 1919, ele alcançou seu primeiro sucesso em larga escala, com o samba de carnaval “Já te digo”, parceria com o irmão China, uma atrevida resposta ao compositor Sinhô, que reivindicava a co-autoria de “Pelo telefone”, considerado o primeiro samba brasileiro e registrado somente por Donga. Nesse mesmo ano, Pixinguinha compôs com Benedito Lacerda um tango que mais tinha cara de maxixe, “Os oito batutas”, nome do célebre conjunto formado por ele ao lado de Donga, China, Nelson Alves, Raul e Jacob Palmieri, Luís de Oliveira e José Alves de Lima. Os caminhos dos batutas foram marcados por preconceito e pelo rompimento de barreiras tanto territoriais como conceituais. Tocaram na França, Argentina e em casas de música erudita, atestando em todos os âmbitos a exemplar competência do grupo. A música retrata mesmo uma trajetória ascendente e entusiasmada.



Lamento

"Se você tem 15 volumes para falar de toda a música popular brasileira, fique certo de que é pouco. Mas se dispõe apenas do espaço de uma palavra, nem tudo está perdido; escreva depressa: Pixinguinha.” Foram as palavras eternizadas de Ary Vasconcelos. Vinicius de Moraes concordava, e declamou emocionado: “A bênção Pixinguinha, tu que choraste na flauta todas as minhas mágoas de amor”. A admiração pelo instrumentista, fez com que o poetinha pusesse versos milimétricos na refinada composição do maestro de 1928, “Lamento”. A bênção definitiva de Vinicius ocorreu em 1963, quando os dois atuaram juntos na trilha sonora do filme “Sol sobre a lama” de Alex Viany. Elizeth Cardoso interpretou com Jacob do Bandolim e o conjunto Época de Ouro as pequeninas esferas brilhantes da canção. As “coisinhas simples” de Pixinguinha.



Naquele tempo

A excursão de Pixinguinha com os Oito Batutas pela França era para ter durado um mês, mas acabou se estendendo por seis. Na volta, eles foram acusados de terem se rendidos aos cânones da música americana, especialmente o jazz. Foi nesse tempo que a gravadora Victor contratou Pixinguinha para ser seu maestro e arranjador. O já considerado instrumentista demonstrou toda sua gama de influências ao inovar as matizes do arranjo brasileiro e dar a ele uma roupagem nova, com elementos do jazz, da música africana, européia e generosas doses de percussão que garantiam o tempero nacional. “Naquele tempo”, choro de 1934, gravado na época ao bandolim por Luperce Miranda, rememora tempos áureos sem perder de vista a continuidade. É a nostalgia de olho no futuro. O estrangeiro que auxilia no interior.



Carinhoso

Pixinguinha foi regente de várias orquestras, entre elas a Orquestra Típica Pixinguinha-Donga, os Oito Batutas e a Diabos do Céu. Suas inovações melódicas provocaram certa celeuma nos meios de imprensa, que não entendiam sua sofisticação. Ao escrever um choro em duas partes, e não em três, como era costume, o próprio compositor sabia que seria alvo de reclamações. Por isso mesmo, “Carinhoso” demorou 20 anos para tomar forma definitiva e alcançar sucesso irrevogável. O que só aconteceu quando João de Barro, o Braguinha, adentrou a ourivesaria de Pixinguinha e lapidou com versos a refinada harmonia. Desde a gravação de Orlando Silva em 1937, por recusa de Francisco Alves e quebra de compromisso de Carlos Galhardo, a música se tornou um dos maiores emblemas do cancioneiro brasileiro, com mais de 200 regravações, quebrando o preconceito com a dedicada delicadeza de Pixinguinha.



Um a zero

Também chamado de “Carne Assada” pelos íntimos, Pixinguinha era bom de copo e comida, e gravou seu nome em ouro na mesa do Bar Gouveia. Assim também, a rua Belarmino Barreto, onde morava, passou a se chamar Pixinguinha, por um projeto do vereador Odilon Braga, sancionado pelo prefeito Negrão de Lima, em 1956. Todo esse reconhecimento não foi suficiente para que ele tivesse uma saúde financeira estável. Por conta disso e do alto consumo de bebidas alcoólicas, trocou a flauta pelo saxofone, e passou a brindar com sensacionais contrapontos os solos de Benedito Lacerda. A dupla gravou inúmeros choros, entre eles “Um a zero”, composto em 1919 para celebrar a conquista da Seleção Brasileira sobre o Uruguai no campeonato sul-americano de futebol. A música ganhou letra de Nelson Ângelo, violonista do Clube da Esquina, e é mais um show de bola que Pixinguinha dá com suas ousadas inversões.



Ingênuo

O radialista, cantor e compositor Almirante foi quem convidou Pixinguinha e Benedito Lacerda para participarem de seu programa “O Pessoal da Velha Guarda”, que seria a base para a criação da orquestra de mesmo nome. Contando posteriormente com Donga e João da Bahiana como convidados, entre outros, a iniciativa foi levada para a Rádio Clube em 1953, e mais tarde resultou no Festival da Velha Guarda, com transmissão para a rádio e a TV Record, em 1954. “Ingênuo”, choro de 1946, composto um ano antes do convite para a atração, tem ritmo dolente e sereno que comprova a versatilidade de um dos mestres da canção brasileira. Mais tarde, ganhou letra do talentoso Paulo César Pinheiro.



Vou vivendo

No ano de 1955, Pixinguinha chegou ao LP através dos discos “A Velha Guarda” e “Carnaval da Velha Guarda”, com a participação de seus músicos e Almirante. Era a estréia do renomado compositor, instrumentista, maestro e arranjador no novo formato. Dois anos depois, seria convidado pelo então presidente Juscelino Kubitschek a almoçar com o trompetista norte-americano Louis Armstrong no Palácio do Catete. Em 1946, ele havia composto com Benedito Lacerda um inspirado choro nomeado “Vou vivendo”. De forma simples e prodigiosa, expunha as belezas e cicatrizes de uma vida plena, em que gozou de fama e atravessou espinhos, mantendo inalterada a humilde sabedoria.



Fala baixinho

Sobre suas músicas, Pixinguinha dizia: “Elas vêm, só isso”. Assim ele veio e soprou a vida, e se foi no mesmo sopro de flauta e saxofone, menos de um ano depois de sua amada companheira Betty, numa cerimônia de batizado. Ainda viva, Betty não sabia que Pixinguinha estava internado no mesmo hospital que ela, e ia lhe visitar de terno e buquê de flores na mão como se viesse de casa. Antes de morrer o músico ainda teve tempo de receber homenagens no Teatro Jovem, Museu da Imagem e do Som, Teatro Municipal e Assembléia Legislativa, com as presenças de Clementina de Jesus, João da Bahiana, e outros. A última música foi para Eduardo, segundo neto, filho de seu único descendente, Alfredinho, que ele chamou de “Eduardinho no choro”. Em 1964, Hermínio Bello de Carvalho letrou um bonito choro do compositor, gravado belamente por Maria Bethânia em 1999, com uma determinação implícita: Quando lembrar Pixinguinha, “Fala baixinho”, que o coração ouve.

"A bênção Pixinguinha, tu que choraste na flauta todas as minhas mágoas de amor" Vinicius de Moraes



Raphael Vidigal Aroeira

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