domingo, 1 de maio de 2011




A doença aliada à origem africana da avó rendeu-lhe o apelido inusitado. As baixarias ouvidas em casa pelo choro do pai e dos amigos deram a ele uma flauta mágica. O ouvido desaforado fez com que se transformasse em maestro, inepto e aclamado: Villa-Lobos, Ernesto Nazareth, Jacob do Bandolim, todos foram unânimes em aplaudi-lo. As vaias vieram quando excursionou com os Oito Batutas para ver o mundo. E se tornou um brasileiríssimo arranjador influenciado pelo jazz americano e os ritmos africanos. As dificuldades financeiras, a bebida e o fumo, o presentearam com um sax. E todas essas rasteiras terrenas ajudaram a compor o gênio que transcendeu as barreiras do tempo: Carinhoso, Lamentos, Um a Zero, Rosa. Pixinguinha, música semente.



Rosa

Sorte para a música brasileira que o garoto Alfredo da Rocha não obedecia aos pais quando era mandado para a cama. Foi assim, ouvindo escondido a festa do choro em sua residência que ele obteve inspiração para compor “Lata de leite”, aos 12 anos, em homenagem aos músicos que chegavam bêbados pela manhã e bebiam o leite de outros nas portas das casas. Pouco depois, aos 17, o menino deu prova da importância que viria a ter no cenário musical, ao compor “Rosa”, uma valsa de 1917 que ganhou versos de Otávio de Souza, “um mecânico muito inteligente que morreu novo”, segundo o próprio Pixinguinha. A gravação antológica realizada em 1937 por Orlando Silva realça o tom de encantamento com o inatingível da melodia e todo o romantismo da letra.



Sofres porque queres

Pixinguinha era o caçula de uma família de 14 irmãos, incluindo os dois casamentos de sua mãe. O pai tocava flauta nas horas vagas e incentivou o “menino bom” quando viu sua afinidade com o instrumento. Primeiro ele tocou cavaquinho, depois foi ter aulas de sopro com Irineu de Almeida. Com 13 anos, já estava em disco. Suas primeiras gravações autorais aconteceram em 1917, com “Rosa” e “Sofres porque queres”, um tango em parceria com Benedito Lacerda gravado por Isaurinha Garcia em 1949. Um choro sofrido e esperançoso.



Os Oito batutas

Pinzindim, como era chamado pela família, demonstrava toda a habilidade na flauta ao incorporar improvisos que o fariam famoso em todas as rodas de choro. Em 1919, ele alcançou seu primeiro sucesso em larga escala, com o samba de carnaval “Já te digo”, parceria com o irmão China, uma atrevida resposta ao compositor Sinhô, que reivindicava a co-autoria de “Pelo telefone”, considerado o primeiro samba brasileiro e registrado somente por Donga. Nesse mesmo ano, Pixinguinha compôs com Benedito Lacerda um tango que mais tinha cara de maxixe, “Os oito batutas”, nome do célebre conjunto formado por ele ao lado de Donga, China, Nelson Alves, Raul e Jacob Palmieri, Luís de Oliveira e José Alves de Lima. Os caminhos dos batutas foram marcados por preconceito e pelo rompimento de barreiras tanto territoriais como conceituais. Tocaram na França, Argentina e em casas de música erudita, atestando em todos os âmbitos a exemplar competência do grupo. A música retrata mesmo uma trajetória ascendente e entusiasmada.



Lamento

"Se você tem 15 volumes para falar de toda a música popular brasileira, fique certo de que é pouco. Mas se dispõe apenas do espaço de uma palavra, nem tudo está perdido; escreva depressa: Pixinguinha.” Foram as palavras eternizadas de Ary Vasconcelos. Vinicius de Moraes concordava, e declamou emocionado: “A bênção Pixinguinha, tu que choraste na flauta todas as minhas mágoas de amor”. A admiração pelo instrumentista, fez com que o poetinha pusesse versos milimétricos na refinada composição do maestro de 1928, “Lamento”. A bênção definitiva de Vinicius ocorreu em 1963, quando os dois atuaram juntos na trilha sonora do filme “Sol sobre a lama” de Alex Viany. Elizeth Cardoso interpretou com Jacob do Bandolim e o conjunto Época de Ouro as pequeninas esferas brilhantes da canção. As “coisinhas simples” de Pixinguinha.



Naquele tempo

A excursão de Pixinguinha com os Oito Batutas pela França era para ter durado um mês, mas acabou se estendendo por seis. Na volta, eles foram acusados de terem se rendidos aos cânones da música americana, especialmente o jazz. Foi nesse tempo que a gravadora Victor contratou Pixinguinha para ser seu maestro e arranjador. O já considerado instrumentista demonstrou toda sua gama de influências ao inovar as matizes do arranjo brasileiro e dar a ele uma roupagem nova, com elementos do jazz, da música africana, européia e generosas doses de percussão que garantiam o tempero nacional. “Naquele tempo”, choro de 1934, gravado na época ao bandolim por Luperce Miranda, rememora tempos áureos sem perder de vista a continuidade. É a nostalgia de olho no futuro. O estrangeiro que auxilia no interior.



Carinhoso

Pixinguinha foi regente de várias orquestras, entre elas a Orquestra Típica Pixinguinha-Donga, os Oito Batutas e a Diabos do Céu. Suas inovações melódicas provocaram certa celeuma nos meios de imprensa, que não entendiam sua sofisticação. Ao escrever um choro em duas partes, e não em três, como era costume, o próprio compositor sabia que seria alvo de reclamações. Por isso mesmo, “Carinhoso” demorou 20 anos para tomar forma definitiva e alcançar sucesso irrevogável. O que só aconteceu quando João de Barro, o Braguinha, adentrou a ourivesaria de Pixinguinha e lapidou com versos a refinada harmonia. Desde a gravação de Orlando Silva em 1937, por recusa de Francisco Alves e quebra de compromisso de Carlos Galhardo, a música se tornou um dos maiores emblemas do cancioneiro brasileiro, com mais de 200 regravações, quebrando o preconceito com a dedicada delicadeza de Pixinguinha.



Um a zero

Também chamado de “Carne Assada” pelos íntimos, Pixinguinha era bom de copo e comida, e gravou seu nome em ouro na mesa do Bar Gouveia. Assim também, a rua Belarmino Barreto, onde morava, passou a se chamar Pixinguinha, por um projeto do vereador Odilon Braga, sancionado pelo prefeito Negrão de Lima, em 1956. Todo esse reconhecimento não foi suficiente para que ele tivesse uma saúde financeira estável. Por conta disso e do alto consumo de bebidas alcoólicas, trocou a flauta pelo saxofone, e passou a brindar com sensacionais contrapontos os solos de Benedito Lacerda. A dupla gravou inúmeros choros, entre eles “Um a zero”, composto em 1919 para celebrar a conquista da Seleção Brasileira sobre o Uruguai no campeonato sul-americano de futebol. A música ganhou letra de Nelson Ângelo, violonista do Clube da Esquina, e é mais um show de bola que Pixinguinha dá com suas ousadas inversões.



Ingênuo

O radialista, cantor e compositor Almirante foi quem convidou Pixinguinha e Benedito Lacerda para participarem de seu programa “O Pessoal da Velha Guarda”, que seria a base para a criação da orquestra de mesmo nome. Contando posteriormente com Donga e João da Bahiana como convidados, entre outros, a iniciativa foi levada para a Rádio Clube em 1953, e mais tarde resultou no Festival da Velha Guarda, com transmissão para a rádio e a TV Record, em 1954. “Ingênuo”, choro de 1946, composto um ano antes do convite para a atração, tem ritmo dolente e sereno que comprova a versatilidade de um dos mestres da canção brasileira. Mais tarde, ganhou letra do talentoso Paulo César Pinheiro.



Vou vivendo

No ano de 1955, Pixinguinha chegou ao LP através dos discos “A Velha Guarda” e “Carnaval da Velha Guarda”, com a participação de seus músicos e Almirante. Era a estréia do renomado compositor, instrumentista, maestro e arranjador no novo formato. Dois anos depois, seria convidado pelo então presidente Juscelino Kubitschek a almoçar com o trompetista norte-americano Louis Armstrong no Palácio do Catete. Em 1946, ele havia composto com Benedito Lacerda um inspirado choro nomeado “Vou vivendo”. De forma simples e prodigiosa, expunha as belezas e cicatrizes de uma vida plena, em que gozou de fama e atravessou espinhos, mantendo inalterada a humilde sabedoria.



Fala baixinho

Sobre suas músicas, Pixinguinha dizia: “Elas vêm, só isso”. Assim ele veio e soprou a vida, e se foi no mesmo sopro de flauta e saxofone, menos de um ano depois de sua amada companheira Betty, numa cerimônia de batizado. Ainda viva, Betty não sabia que Pixinguinha estava internado no mesmo hospital que ela, e ia lhe visitar de terno e buquê de flores na mão como se viesse de casa. Antes de morrer o músico ainda teve tempo de receber homenagens no Teatro Jovem, Museu da Imagem e do Som, Teatro Municipal e Assembléia Legislativa, com as presenças de Clementina de Jesus, João da Bahiana, e outros. A última música foi para Eduardo, segundo neto, filho de seu único descendente, Alfredinho, que ele chamou de “Eduardinho no choro”. Em 1964, Hermínio Bello de Carvalho letrou um bonito choro do compositor, gravado belamente por Maria Bethânia em 1999, com uma determinação implícita: Quando lembrar Pixinguinha, “Fala baixinho”, que o coração ouve.

"A bênção Pixinguinha, tu que choraste na flauta todas as minhas mágoas de amor" Vinicius de Moraes



Raphael Vidigal Aroeira

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