terça-feira, 26 de outubro de 2010




Nas palavras de Herivelto Martins, Grande Otelo tinha “mania de compositor”. O pequeno Sebastião Prata que nasceu em Uberlândia transformou-se num dos maiores atores cômicos do Brasil, e morreu como o inconfundível Grande Otelo no aeroporto de Paris, quando preparava-se para receber uma homenagem. Imortalizado na alma brasileira de Mário de Andrade, ao interpretar Macunaíma no cinema e receber o prêmio de melhor ator, Otelo também se destacou como cantor e compositor de grandes sambas.



Praça Onze

Em 1941, quando ficou sabendo da intenção da prefeitura de demolir a Praça Onze, abrigo dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, Otelo indignou-se e escreveu versos românticos e tristonhos sobre o fato. Então levou a letra para músicos como Wilson Batista, Max Bulhões e Herivelto Martins, a fim de que a musicassem. Nenhum deles se interessou muito, mas o azar de Herivelto era que esse o via todo dia, pois os dois trocavam-se juntos no Cassino da Urca. Herivelto dizia que não cabia samba naquela letra, pois o que Otelo tinha escrito era um romance, com versos do quilate de “Oh Praça Onze, tu vais desaparecer”. Eis que devido à insistência diária do noviço compositor, Herivelto irritou-se e começou a cantar de improviso versos sambados, dizendo para o humorista: “O que você quer dizer é isso: vão acabar com a Praça Onze, não vai haver mais escola de samba, não vai...”, Otelo empolgou-se e começou a escrever ali mesmo os outros versos da canção, enquanto Herivelto tocava a melodia no violão. Quando ficou pronta, a música foi gravada pelo Trio de Ouro com a companhia de Castro Barbosa, e trouxe na execução uma novidade inventada por Herivelto e que fez grande sucesso entre os foliões, o uso do apito para dar ritmo. Todos que sentiam a perda da Praça cantaram e dançaram na avenida a música que dividiu o prêmio de melhor samba do ano de 1942 ao lado da clássica “Ai que saudades da Amélia”, de Ataulfo Alves e Mário Lago. Grande Otelo ria como fazia rir, apesar da tristeza pela perda da praça, ele conseguiu o que queria.



Bom dia, avenida
Grande Otelo aventurou-se pela primeira vez a ter “mania de compositor” no fim da década de 30, quando sua música “Vou pra orgia”, em parceria com Constantino Silva, foi gravada por Nuno Roland na Odeon. Em setembro daquele mesmo ano, atuou ao lado de Carmen Miranda no Cassino da Urca, naquele que seria o último show no Brasil da Pequena Notável. Após o sucesso do samba em parceria com Herivelto sobre a “Praça Onze”, Grande Otelo arriscou com êxito novamente sua veia musical. No ano de 1944 escreveu o que seria o complemento da história da praça. “Bom dia, avenida”, também composta com Herivelto, pedia licença às autoridades para que os sambistas pudessem ocupar com suas escolas a nova avenida Presidente Vargas, afinal eram eles que haviam construído a história da música naquele palco. O samba foi gravado pelo Trio de Ouro e o humorista pôde desfilar na avenida, com voz de tenorino, sua ópera brasileira.

Por mim, Rosa

Sem data definida, estipula-se que no final da década de 70 e início de 80, mais precisamente a partir de 1979, tenha sido quando Grande Otelo gravou dois sambas de sua autoria. O primeiro deles “Por mim, Rosa”, parceria com o compadre Herivelto Martins que fala sobre um divertido entrevero entre marido e mulher, com destaque para os improvisos sacados pelo humorista mineiro.



Chora trombone

A outra música gravada por Grande Otelo a partir do final da década de 70 foi uma parceria sua com Ary Cordovil. “Chora trombone” é uma bonita homenagem ao som do instrumento e o sentimento que ele desperta nos moradores, sambistas e chorões de Mangueira, que Grande Otelo canta com simplicidade, embora adote entonação alta no início da música, e sua habitual simpatia. As duas músicas foram lançadas pelo Projeto Vitrine que saiu por conta do Acervo Funarte da Música Brasileira, em 1997.

No tabuleiro da baiana

Grande Otelo cantou pela primeira vez o samba-batuque “No tabuleiro da baiana” em 1937, em um espetáculo da revista “Maravilhosa”, ao lado da cantora Déo Maia. Chamado para substituir Luís Barbosa, que estava enfermo com uma tuberculose, Otelo procurou Ary Barroso na Rádio Cruzeiro do Sul para ensaiar. Ao final do número, Ary vaticinou: “Você nunca vai cantar “No tabuleiro da baiana”. Você é muito desafinado!”. Otelo apresentou a música no Teatro Carlos Gomes e foi um grande sucesso. Segundo ele, “continuou desafinado” e cantando a música. Décadas depois, em 1981, no especial da TV Globo “Maria da Graça Costa Penna Burgos” cantou novamente o sucesso ao lado de Gal Costa. O resultado não poderia ser outro, muitos risos e boa música!



Boneca de Piche

Uma das músicas mais cantadas por Grande Otelo foi “Boneca de Piche”, de Luiz Iglésias e Ary Barroso. Em 1939, começou com Elizeth Cardoso a parceria que duraria quase dez anos. Em 1952, apresentou o samba ao lado da cantora e dançarina franco-americana Josephine Baker, no Cassino da Urca, em quadro intitulado ‘Casamento de Preto’, escrito por Luís Peixoto. Josephine inclusive cantou em português. Depois, a cantou em duetos inusitados com Virgínia Lane, Chico Anysio e Xuxa. Outra vez, entoou novamente os versos inspirados da canção ao lado da atriz Betty Faria, no programa da TV Globo, Brasil Pandeiro, em 1979.

Quem é?

Choro de Joraci Camargo e Custódio Mesquita cantado por Carmen Miranda e Barbosa Júnior em 1937, foi interpretado por Grande Otelo e a cantora carioca Sônia Santos 40anos depois, em um especial para a Rede Globo.



Grande Otelo canta Vinicius de Moraes – O Porquinho (infantil, 1981)

Em 1970, Vinicius de Moraes lançou um livro infantil baseado na trajetória bíblica da Arca de Noé. O livro conta a história dos animais que embarcaram na viagem chuvosa de 40 dias e 40 noites através de poemas bem humorados e singelos. Com o talento para manusear as palavras que ele tinha, a obra se transformou em especial da Rede Globo, exibido no dia das crianças do ano de 1980. As poesias foram musicadas por Toquinho, Tom Jobim, Paulo Soledade e outros amigos de Vinicius. E cantadas por Chico Buarque, Milton Nascimento, Elis Regina, Alceu Valença, Ney Matogrosso e outros talentos da arte do canto. Devido ao sucesso do espetáculo, apresentado no ano da morte de Vinicius, um ano depois surgiu a continuação: Arca de Noé 2, com poemas tão encantadores quanto os primeiros. E foi nessa segunda versão que o ator e compositor Grande Otelo apareceu em cena cantando “O Porquinho”, poema musicado por Toquinho com arranjos de Radamés Gnatalli. Com graça e deboche, Otelo dá vida ao porquinho esclarecido que canta com alegria pratos famosos da nossa culinária.

"E o Brasil vai de mansinho, se enchendo assim de mulatinho" Grande Otelo



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 24/10/2010.

terça-feira, 19 de outubro de 2010




O Raimundo mais famoso do Ceará levou as velas do Mucuripe para velejar o Brasil inteiro. Seu parceiro na música mostrou aos jovens seu descontentamento com a própria geração. O poeta que nasceu no Ceará era na verdade agricultor. O poeta que levou essa paixão no nome não era cearense. O grupo que se tornou mais conhecido exibiu com orgulho seus “Quatro Ases e um Coringa.” Outro compositor daquela terra desfilou na avenida seu bloco do prazer. E o letrista mais proclamado nas canções do Rei do Baião foi a síntese desse povo rico e diverso.



Mucuripe
Fagner e Belchior se conheceram em Fortaleza, depois do primeiro sair de Orós e o segundo deixar Sobral. Juntos, ao lado de Rodger Rogério, Ednardo e Ricardo Bezerra formaram o “Pessoal do Ceará”, que se apresentava semanalmente em um programa de rádio. Levando na bagagem as lembranças de sua terra, seguiram roteiros distintos, Fagner indo para Brasília estudar arquitetura e Belchior indo para o Rio de Janeiro estudar medicina. Mas em 1971, no Festival de Música Popular do Centro Universitário de Brasília, Fagner inscreveu uma música que havia feito com o conterrâneo agora distante. “Mucuripe”, destino solitário das jangadas em Fortaleza, tirou o primeiro lugar e atentou os olhares brasileiros para a permanente poesia das águas da canção cearense. Um ano depois, a música foi interpretada por Elis Regina. Com esse êxito, Raimundo Fagner mudou-se para o Rio de Janeiro e Belchior para São Paulo. Além disso, Fagner fez seu próprio registro, na série “Disco de Bolso”, lançada pelo jornal “Pasquim”, com Caetano Veloso cantando no outro lado do compacto “A Volta da Asa Branca”, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas. Refletia no canto arraigado de Fagner, a permanente poesia das águas. Da flor fez-se o agasalho. Da vela que ilumina o mar, a esperança de um rapaz novo encantando.




Como nossos pais


Outro sucesso de um cearense na voz de Elis Regina foi a cultuada “Como nossos pais”, hino composto por Belchior que lamentava as não conquistas de sua geração. Traçando um paralelo interessante sobre a história da humanidade, o compositor sentenciava que estavam todos fadados a cometerem os mesmos erros do passado. Usando imagens fortes e carregadas de ironia, a música se tornou uma das mais conhecidas na voz de sua intérprete definitiva, que a gravou em 1976. Naquele ano, Belchior ainda lançou “Apenas um rapaz latino americano” e “A Palo Seco”. E a onda hippie passaria em seus versos se transformando justamente naquilo que mais repudiou.

Bloco do Prazer



O compositor Fausto Nilo conheceu os integrantes do “Pessoal do Ceará” ainda na década de 70, e desde então passou a ser gravado por cantores como Fagner e Belchior, e mais tarde, Chico Buarque, Ney Matogrosso, Caetano Veloso, Geraldo Azevedo, e outros. No ano de 1979, o “Trio Elétrico Dodô e Osmar”, banda criada pelos inventores do Trio Elétrico na Bahia, lançou no carnaval a música “Bloco do Prazer”, parceria de Nilo com o novo baiano Moraes Moreira. O frevo, em ritmo acelerado, é uma conclamação desenfreada à alegria e à festa. Gravada por Nara Leão em 1981, tornou-se sucesso nacional na voz de Gal Costa, um ano depois. Era apenas o início do desfile daquele cearense de Quixeramobim.

Asa Branca


Humberto Teixeira foi parceiro de Luiz Gonzaga em verdadeiros clássicos da canção brasileira, além de ter fundado com ele o popular baião. Nascido em Iguatu, no interior do Ceará, Humberto recebeu de Luiz Gonzaga a missão de finalizar uma música que versava sobre uma certa lenda nordestina. A lenda era sobre “Asa Branca”, uma conhecida pomba brava que deixa para trás o sertão quando a seca se acomete dele. O compositor não só finalizou a música como escreveu versos de profunda sensibilidade, entre eles “quando o verde dos teus óios se espaiá na prantação.” A toada do homem que imita o vôo do pássaro tornou-se emblemática na união entre o cearense Humberto Teixeira e o pernambucano Luiz Gonzaga.



Kalu

A musa de verdes olhos de Humberto Teixeira, realmente existiu, como ele confessou anos mais tarde em entrevista: "Na verdade, Kalu existiu. Só que com outro nome, naturalmente". O baião de sua autoria foi um pedido feito diretamente por Dalva de Oliveira, que desejava incluir uma música nordestina na excursão que faria à Europa com a orquestra de Roberto Inglez. Gravada por ela em 1952, foi um dos grandes sucessos daquele ano, e mais uma dentre as muitas músicas famosas do cearense Humberto Teixeira, regravada por nomes como Chico Buarque e Eliana Pittman.

Cabelos brancos



Os conflitos amorosos entre Dalva de Oliveira e Herivelto Martins deram início a uma briga pública e músicas que se tornaram eternas no cancioneiro brasileiro. Entre elas, “Cabelos brancos”, de 1949, gravada pelo conjunto cearense “Quatro Ases e um Coringa”. O grupo formado pelos irmãos Evenor, José e Permínio Pontes de Medeiros, e ainda André Batista Vieira e Pijuca fez sucesso no final da década de 40 ao lançar o rancoroso samba de Herivelto. Outros sucessos do quinteto foram “Baião de Dois”, de Luiz Gonzaga e do conterrâneo Humberto Teixeira, “Baião”, também da dupla, “Trem de Ferro”, de Lauro Maia e “Onde estão os tamborins” de Pedro Caetano. Em 1957, as cartas do baralho cearense decidiram cada uma trilhar o seu próprio caminho.


A triste partida




O cearense Antonio Gonçalves da Silva, nasceu em Assaré, e ficou conhecido como Patativa de sua cidade. Seguiu a profissão do pai e tornou-se agricultor, mas ficou conhecido como poeta. Com pouca formação escolar, aprendeu mexendo na terra a irrigar as palavras que sentem o coração das pessoas. Principalmente as pessoas do seu nordeste, da sua aldeia inabitada que ele levou ao mundo. No ano em que se iniciava a ditadura no Brasil, o brilho de um monarca deu luz à arte de Patativa. Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, o viu recitar os versos de “A triste partida”, e decidiu que lhe cabiam as harmonias de uma música. Em 1965, como num repente, a caminhada triste e árdua do nordestino em busca dum melhor destino ganhou os ares de todo o país. A seca poesia clara de Patativa impregnava todo o Brasil. Dali em diante, seus livros de poesia poderiam ser lidos ou escutados, ou ainda admirados, por aqueles que o vissem trabalhando ao vento.



Luar do Sertão

Catulo da Paixão Cearense nasceu na capital do Maranhão, e aos dez anos foi para o interior do Ceará. Interior que amaria muito mais do que qualquer capital. Catulo era apaixonado pelas coisas singelas, simples e ingênuas e delas fez a obra-prima de suas canções. Eternizada na memória afetiva do povo brasileiro, “Luar do Sertão” foi composta por ele em 1914, e gerou divergências com relação à autoria da música. Enquanto Catulo afirmava que a havia composto sozinho, inspirado por uma música folclórica, outros como Heitor Villa-Lobos e Almirante diziam que a melodia era de João Pernambuco, violonista semi-analfabeto. O que não se discute é a lembrança imediata de cada brasileiro quando se começa a tocar o refrão que remete ao balanço de uma rede.

Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 17/10/2010.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010




Angenor só descobriu seu nome aos 56 anos, ao se casar com sua segunda esposa. Só gravou suas músicas em disco aos 65, depois de lavar carros e construir com tijolo e cimento os caminhos de sua vida. Mas Angenor sempre foi poeta, sempre foi Cartola mesmo antes de tê-la na cabeça. Por obra do destino, cresceu fidalgo em meio à pobreza de Mangueira, e a cantou em versos silenciados pelo perfume das rosas. A cantou em versos que o estudo das línguas, a formação cultural, a exigência da técnica, não ensinam. Foi aprendiz da alvorada, das cores verde e rosa que o amanhecer nos mostra ao desfilar suas bandeiras, dos ensinamentos cíclicos de um mundo moinho, e mestre do samba nítido e acarinhado pelas cordas de aço de seu violão divino.



Cartola nasceu no Catete, logo depois foi morar em Laranjeiras, bairros da zona sul do Rio de Janeiro. Mas com a morte do avô, em 1919, ele e seus cinco irmãos foram obrigados a se mudar com os pais para o Morro da Mangueira, favela que se iniciava naqueles tempos. Sempre chegado a uma cachaça e várias mulheres, Cartola não gostava de trabalhar, o que lhe rendia diversas brigas com o pai. Numa dessas foi expulso de casa. A essa altura já trabalhava como pedreiro, já usava o chapéu coco para proteger o cabelo da cal que lhe deu o apelido famoso e já gostava de samba, inclusive já escrevia os seus. Os primeiros deles foram mostrados aos colegas do “Bloco dos Arengueiros”, que não simpatizaram muito com as composições. Embora fossem bons de samba e de briga, eles provavelmente não notaram que Angenor escondia sob a cartola que lhe protegia a cabeça, versos e melodias tão sublimes quanto as rosas que desabrochavam na primavera. Numa tarde de 1975, o compositor Nuno Veloso, que levava Cartola e dona Zica até a casa de Baden Powell, resolveu comprar flores para o casal. Ao se encantar com o desabrochar da roseira no dia seguinte, Zica questionou o marido: “Como é possível, Cartola, tantas rosas assim?”, ao que ele respondeu sem muito entusiasmo: “Não sei, as rosas não falam”. E começava a florescer naquele dia mais uma música que traria voz eterna a seu compositor. Gravada por ele e por Beth Carvalho em 1976, demonstrava toda a esperança lírica de Cartola, que a escrevera em seus 67 anos.

Alvorada no morro

Assim que chegou ao morro de Mangueira, Cartola ficou amigo de Carlos Cachaça. Freqüentando as zonas boêmias sempre que podia, foi apresentado aos malandros do local e se tornou um dos fundadores da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, em menção ao fato de ser a primeira estação onde parava o trem que partia da Central do Brasil. Inspirado por lembranças de sua infância, quando assistia às manifestações carnavalescas do “Rancho dos Arrepiados”, tingiu com elegância a combinação entre um “caule verde” e uma “rosa na ponta”, como costumava dizer. A escola que ajudou a fundar, e o morro que lhe deu inspiração para tal, seriam homenageadas em várias de suas canções, uma delas lançada por Odete Amaral em 1968 e imortalizada em 1972 no canto de brisa de Clara Nunes: “Alvorada” foi composta em uma das madrugadas em que Carlos Cachaça e ele desciam o morro do Pendura a Saia. Os dois se impressionaram com a beleza dos primeiros raios de sol que surgiam no horizonte e iluminavam a paisagem sofrida dos seus moradores. Ali começaram a ser coloridas as estrofes e melodias que ganhariam pinceladas de Hermínio Bello de Carvalho, e representavam a admiração dos autores pelo morro carioca.



Não quero mais amar a ninguém

Com o sucesso da escola de samba da Mangueira, Cartola se tornou conhecido de figuras famosas como os cantores do rádio Mário Reis e Francisco Alves, o sambista e poeta da Vila, Noel Rosa e o maestro Heitor Villa-Lobos. No ano de 1936, sua música “Não quero mais”, em parceria com o amigo Carlos Cachaça e o bamba Zé da Zilda, recebeu prêmio no desfile da escola, e um ano depois foi gravada por Aracy de Almeida. Mestre de harmonia da Estação Primeira, Cartola vendia seus sambas, mas não abria mão da autoria. Por essa época, ele uniu seus trapos com Deolinda, uma mulher mais velha, casada e com uma filha. Vizinha de Cartola, Deolinda o ajudava quando estava doente, e aos poucos o carinho que nutria foi se transformando em outro sentimento. Os dois resolveram morar juntos em um barraco com lugar para a filha e o pai de Deolinda. Com o passar do tempo, a casa passou a receber mais moradores, e um dos mais constantes era justamente Noel Rosa, nas noites em que tomava porres homéricos ao lado de Cartola. Por uma triste ironia do destino, os anjos do morro levaram Deolinda para longe do menino que ela aprendeu a cuidar e a amar, e a música que ele havia composto para o carnaval simbolizava agora o início de sua longa quarta-feira de cinzas. Cartola estava indo embora de Mangueira, desiludido com a vida e com o samba, e sentenciava: “Não quero mais amar a ninguém, não fui feliz o destino não quis o meu primeiro amor, morreu como a flor, ainda em botão, deixando espinhos que dilaceram meu coração...”



Tive sim

As muitas agruras que a vida lhe proporcionou ao longo dos anos fizeram com que Cartola desistisse do samba. Ele já havia perdido a mãe em pequeno, sua esposa e agora decidira que abandonaria a música antes que esta o abandonasse. Os amigos achavam que estava morto, fizeram canções em sua homenagem. Carlos Cachaça o encontrou magro, sem dentes, bebendo dois litros de pinga por dia. Resolveu apresentá-lo à irmã de sua futura esposa. Dona Zica acolheu Cartola nos braços e no coração. Em 1968, ele lhe dedicou um de seus sambas mais comoventes: “Tive sim”, uma declaração de amor presente sem renegar as alegrias passadas. A música foi cantada por Cyro Monteiro na primeira Bienal do Samba, realizada pela TV Record, e ficou em quinto lugar. Durante a apresentação, Cyro foi vaiado por torcedores de outros concorrentes, e chorou mais tarde em uma mesa de bar: “Nunca fui vaiado na minha vida, ainda mais cantando música do Cartola!” Mas já não havia motivo pra choro. Cartola estava de volta.

Acontece

O retorno de Cartola para as raízes de sua Mangueira aconteceu aos poucos. Depois de conhecer Dona Zica, passou a trabalhar como lavador de carros. Numa dessas noites, resolveu ir até um bar próximo e esbarrou por lá com Sérgio Porto, conhecido como Stanislaw Ponte Preta, que o reconheceu imediatamente: “Você não é o Cartola?”, ao que ele respondeu: “Sou”. O jornalista não conteve o espanto, escreveu sobre o encontro em sua coluna e passou a divulgar seu nome, levando-o para cantar em programas de rádio. O sambista desaparecido havia sido encontrado. Ainda assim, Cartola se deparava com dificuldades e teve que trabalhar no jornal “Diário Carioca” e no Ministério de Indústria e Comércio, servindo café. Por conta do embalo inicial dado por Sérgio Porto e do amor despertado por Dona Zica, foi que Cartola voltou à cena definitivamente, e em 1972 teve seu samba “Acontece”, gravado por Paulinho da Viola. A música mais uma vez trazia a temática do amor diante do olhar sensível e resignado de Cartola, recusando-se a cultivar um disfarce.



O Sol Nascerá [A Sorrir]

Passado o período noturno na vida de Cartola, ele agora vivia uma nova fase. Morando com Dona Zica, recebia diariamente a visita de amigos dispostos a curtir um bom samba. A idéia foi se transformando naquela que seria a casa mais famosa do Rio de Janeiro na década de 60. Dona Zica cuidava da cozinha, enquanto Cartola cuidava do violão. Nascia o Zicartola, freqüentado por bambas do morro e pela intelectualidade carioca que esboçava os primeiros passos da bossa nova. Para garantir a qualidade dos espetáculos, Cartola chamou o amigo Zé Kéti para ser diretor artístico e Hermínio Bello de Carvalho criou a Ordem da Cartola Dourada, que agraciava os grandes músicos brasileiros que ali se apresentavam. Entre eles estavam Nelson Cavaquinho, João do Vale, Ismael Silva e Paulinho da Viola. Localizada na rua da Carioca, a casa despertou o interesse de Nara Leão, que além de bossa nova gravou em seu disco de estréia três sambas, um deles intitulado “O Sol Nascerá” , também conhecido como “A Sorrir”, de Cartola e Elton Medeiros. Incluída no Show Opinião, a música tornou-se um dos maiores sucessos da carreira de Cartola, e recebeu regravações de Isaura Garcia, Elis Regina, Jair Rodrigues, dentre tantos outros. O refrão solar traduzia bem o momento de seu autor, sorrindo após a tempestade.



Cordas de Aço

A voz de Cartola finalmente ecoou em disco no ano de 1974. Embora já tivesse feito participações em trabalhos de outros cantores, era a primeira vez que se ouvia seu canto em disco próprio. Lançado por iniciativa de João Carlos Botezzeli, o Pelão, através da gravadora Marcus Pereira, o álbum recebeu prêmios e reconhecimento instantâneo, sendo Cartola logo convidado a gravar mais três LP´s. A esses seguiram-se turnês que percorreram o Brasil com enorme sucesso. Cada vez mais conhecido do grande público, Cartola também encantava a crítica, e participou ao lado de João Nogueira do bem sucedido Projeto Pixinguinha. Foi num desses álbuns no ano de 1976 que ele deixou seu registro para a música “Cordas de Aço”, em que homenageava o companheiro de toda a vida, o querido violão. E lá iam os dois madrugada adentro, cantando.

O Mundo é um Moinho

“O mundo é um moinho” foi lançada por Cartola em 1976. Na música incisiva em que supostamente falava para uma sobrinha que saíra de casa para ser prostituta, Cartola era acompanhado pelo violão de Guinga, grande instrumentista com apenas 20 anos. A canção, que tinha sido ouvida dois anos antes em um programa especial na Rádio Jornal do Brasil, quando Cartola a cantara para o radialista e produtor Luiz Carlos Saroldi, pode ser considerada uma das mais bonitas da carreira do fundador de Mangueira. Era Cartola destilando seus sentimentos claros em um mundo cheio de obscuridades e mesquinharias. Partindo para ver o céu no dia 30 de novembro de 1980, o pedreiro de chapéu coco é sempre lembrado como um dos grandes gênios da música brasileira, suas rosas mais do que nunca falam e levam a vida a sorrir nesse moinho de tristezas e alegrias.

"Todo mundo tem o direito de viver cantando" Cartola



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 10/10/2010.

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