terça-feira, 12 de julho de 2011



Não espere arroubos sonoros. Zélia Duncan canta meiga, delicada, suave, suas composições novas. Isso é o que prepara o disco. Diante da platéia a contenção das interpretações se revela desafiadora e fugaz, com leve sorriso de coragem sorrateira.

A presença de Zélia no palco é resguardada de beleza, pelo vestido de Ronaldo Fraga (o coração do artista segundo a cantora), o cenário de Analu Prestes, pinturas abstratas refletidas pelas cores de uma iluminação climática, e a simpatia da protagonista, acompanhada de perto por Ézio Filho (direção musical e contrabaixo), Webster Santos (violão, bandolim e guitarra), Jadna Zimmerman (bateria, percussão e flauta) e Leo Brandão (teclados e acordeom).

À vontade desta, dissolve-se o desdém “pelo sabor do gesto”, título do álbum lançado em 2009 que alicerça show apresentado no último dia 10 de julho no Palácio das Artes, e que rende belo número onde a cantora posiciona-se com violão ao colo e interpretação intimista.

Ao abrir a apresentação com “Boas Razões”, versão de música do artista francês Alex Beaupain, Zélia assinala a que veio, embora ainda distante fisicamente do público, já esboça o vigor e a vontade com que irá conduzir a noite. A participação de Fernanda Takai nessa canção no disco é substituída pelos vocais do guitarrista da banda. Na sequência, emenda-se a solenidade a Rita Lee, de quem Zélia é eterna devota, com a pop roqueira “Ambição”.

Mas o circo aconchegante começa a pegar fogo a partir de “Intimidade”, música de Zélia e Christiaan Oyens que lembra os primórdios do Barão Vermelho (da época de Cazuza & Roberto Frejat), um bluesy cadenciado com letra ácida e humor farpado. A cantora esparsa em rigidez malemolente os gestos necessários ao destinatário da mensagem.

Aliás, um dos pontos altos do espetáculo é a condução sonora de Zélia Duncan, que se distingue por todo o corpo com intervenções precisas de interação bem humorada e suposição ligeira de pernas e braços, que logo se recolhem ao lugar de origem.

Na super-tocada “Tudo sobre você”, a nitidez dos versos se estende ao belo arranjo, inventivo e dinâmico, onde os instrumentos retomam lembranças de festas de aniversário infantis, artimanhas de John Ulhoa, co-autor da música, produtor do álbum e segundo Zélia Duncan, maior responsável pela existência do tudo em cena, ao respondê-la em e-mail sobre o projeto: ‘xá com nóis’, brincadeira diversas vezes direcionada à platéia.

A “Felicidade” de Luiz Tatit, embandeirada pelo autor paulista como o novo mal do século em lugar da depressão, escancara tom debochado sugerido pelo sobe e desce de sobrancelhas da cantora. O que lhe é complementado pelo sorriso de lado e os questionamentos sóbrios, quase falados: “Não sei por que tô tão feliz, preciso refletir um pouco e sair do barato.”



Nada mais lhe escapa, os espaços vazios preenchidos de felicidade argumentam sem precaução nenhuma a letra propositadamente rimada de Zeca Baleiro, ao denominar símbolos de desejos amorosos da geração descartável: do “tesouro dos czares” ao “céu de celulares”, esta uma imagem perfeita ao romantismo ajambrado.

“Se eu fosse um blues, te mandava embora, se eu fosse um samba, esperava a aurora”, refina melodia e letra em parceria de Dante Ozzetti, com construção incomum de sentidos determinados pela emoção da música: do choro à valsa, da fuga de Sebastian Bach à Nona Sinfonia de Beethoven, reproduzida alusivamente à citação do verso.

O fraseado reto de “Duas Namoradas” de Itamar Assumpção e Alice Ruiz, serve-se no samba deslocado de Zélia Duncan, garantindo a hibridez proposta: “Tenho duas namoradas, a música e a poesia, que ocupam minhas noites, que acabam com meus dias”. Também o “Cedotardar” de Moacyr Albuquerque e Tom Zé alcança sublime vôo na voz bem acolchoada e no arranjo dramático, com progressão paulatina ao intencional clímax em bolero: “no mais horroroso castigo....te sigo!”. A poesia é preservada em sua integridade.

“Borboleta”, gerida em comunhão por Marcelo Jeneci, Arnaldo Antunes, Alice Ruiz e Zélia é ligeira e pop, e justifica-se pelo complemento da cantora: ‘um bando de marmanjo fazendo música de criança’. Um dos grandes momentos acontece à explanação em língua de sinais de “Todos os Verbos”, dedicada à fã semi-auditiva que buscou Zélia. Na procura de se abrir a esse universo tão sonoro quanto, a artista emociona em singeleza e doçura.

Na interpretação do “Tom do Amor”, nascida da descoberta do ‘diálogo de uma mãe ensinando as coisas importantes da vida à filha’, tudo em torno aconchega sutilezas, levezas, descompromissos e descontrações. Zélia flutua jardins de cores amenas, que não chegam a ser infantis, nem convidam à melancolia. É um contato que se interrompe, e o intervalo entre o espesso gesso e a liquidez da tinta é que moldura o quadro particular da cantora. Gotas que pingam devolvendo gestos, canções, palavras, afetos esquecidos em ambiente que se tornou cheio e duro. A composição é dividida com Paulinho Moska.

Sem esconder as ironias, Zélia canta uma desconhecida de Roberto Carlos, “I Love You”, e outra dedicada aos corações esperançosos, “Por isso corro demais”. Já no final, “Flores”, de Fred Martins e Marcelo Diniz combina poesia e energia na medida incerta pretendida: “Flores para quê? Flores para quando tu chegares, flores para quando tu chorares, uma dinâmica botânica de cores.” E o visual recebe mesmo duas flores artesanais.

O bis recheado de sucessos, “Catedral”, versão para música de Tanita Tikaram, e “Alma”, de Pepeu Gomes e Arnaldo Antunes, ganha coro ‘afinado’ da platéia, segundo a própria cantora e motivação elevada, fechando em altos tons as sonoridades decifradas em luzidias miniaturas.

Zélia não está se poupando, não deixa de ser enfática, destemida, apenas descobriu outra maneira de encarar a vida: sorrindo ao invés de gritando. Não escondida, mas aparecendo para quem quer ouvi-la. Não há nesse gesto a passividade, mas o saboreio de uma comida muito mais palatável ao devaneio de nuvens que tempestades.



Raphael Vidigal Aroeira

Publicado no Jornal "Hoje em Dia" em 12/07/2011.

quarta-feira, 6 de julho de 2011



Prodígio já nasceu chorando. Não queria aquele nome. A mãe o chamou Aníbal. Os amigos o batizaram Moleque do Banjo.
Seria sempre Garoto, aonde quer que fosse, arrastava suas cordas mágicas. Diziam serem encantadas, aquelas mãos.
Saiu de São Paulo foi para o Rio de Janeiro. Depois, Estados Unidos.
Voltou à cidade que o acolheu, descansou o coração, nos preparativos de mais uma viagem. Levou consigo as cordas. Deixou delas, uma pequena amostra, suficiente para alentar lembranças e saudades recolhidas.

Amoroso

O pai de Garoto tocava guitarra portuguesa e violão. Do irmão Batista, também músico, o menino que já ensaiava num instrumento improvisado de pau e corda, ganhou o primeiro banjo. Desde cedo, integrou o “Regional dos Irmãos Armani”, com 11 anos, depois “Conjunto dos Sócios”, “Chorões Sertanejos”, “Conjunto Regional”, em substituição a Zé Carioca, “Rádio Educadora Paulista”, entre outros. Convites nunca lhe faltaram. Ao se apresentar com o violonista D. Montezano, conhecido como Serelepe, ao diretor artístico da Parlophon, foi imediatamente convidado a gravar um disco, contendo os maxixes “Bichinho de Queijo” e “Driblando”, de sua autoria, envergando o singular banjo. Mais tarde, iria unir suas cordas às de Zezinho, conhecido Aimoré, em infindáveis serenatas no bairro da Luz, e depois num conjunto de choro. E mais tarde ainda, iria compor “Amoroso”, em 1942, com a completude que lhe era específica.



Desvairada

Perambulando com suas cordas vibrantes, Garoto conheceu Petit, com quem formou ao lado de Aimoré, trio que se apresentava no salão nobre de um edifício em São Paulo, o Martinelli. Depois viajou com o último para o Paraná, a bordo da “Quarta Caravana Artística”, Porto Alegre, no “Cassino Farroupilha” e Buenos Aires, na Argentina, acompanhando Carlos Gardel em algumas músicas. No retorno a São Paulo, tomou posse de um violão-tenor para se apresentar com o seresteiro Silvio Caldas e o velho companheiro de viagem. Ainda na década de 30, gravou choros e valsas pela Columbia, demonstrando sua habilidade também na guitarra havaiana. Estreou na Rádio Mayrink Veiga, no Rio de Janeiro, e se encontrou com Carmen Miranda, Alvarenga e Ranchinho, Ary Barroso, Jararaca e Zé Formiga, Dorival Caymmi e Laurindo de Almeida, dando iniciativa, com este, à “Dupla do Ritmo Sincopado” e grupo “Cordas Quentes”. Isso após participar do “Conjunto Regional” da Rádio Cruzeiro do Sul em sua terra natal, desfazer a dupla com Aimoré e se casar, fixando-se na capital fluminense. Ao menos por algum tempo. Sua rotina “Desvairada” bem correspondia ao ritmo do choro de 1949.



Vamos acabar com o baile!

Incrivelmente, apesar do talento destacado, Garoto chegou a ficar algum tempo desempregado, com o fechamento da Rádio Cosmos. No entanto, a maior oportunidade da sua vida ainda estava por vir, quando recebeu um carta: “Querido Garoto, espero que você tenha gostado da idéia de vir para cá, e aceite-a, pois esta terra é a melhor do mundo, só você estando aqui é que acreditará. Estamos ansiosos para que você venha; eu e os rapazes.” A remetente era Carmen Miranda, que o chamava para substituir Ivo Astolfi no “Bando da Lua”. Resultado: rumou para os Estados Unidos, onde permaneceu por oitos meses na companhia da Pequena Notável, fazendo parte do conjunto e chamando a atenção naturalmente, pelo brilho de suas cordas. Teve a honradez de conhecer diversidades cidades, fazendo o que melhor sabia e gostava, atuar em filmes, e tocar até para o presidente norte-americano, Franklin Roosevelt, na Casa Branca, tudo isso nos idos de 1939 e 1940. Tornou-se o “homem dos dedos de ouro”, nas palavras do organista Jesse Crawford. Já de volta ao Rio de Janeiro, compôs “Vamos acabar com o baile!”, com José Brandão, em 1952. Baile foi o que realizou em sua passagem em terras estrangeiras, mantendo boquiabertos até os mais exigentes.



São Paulo Quatrocentão

Finalmente afixado no Rio de Janeiro, criou o conjunto “Garoto e seus Garotos”, com Valdemar Reis, Poli e Almeida no violão, mais Russo do Pandeiro. Ao fim deste projeto, se encaminhou para a Rádio Nacional, se deparando por lá com a pianista Carolina Cardoso de Meneses, com quem gravou discos em dupla. Formaria também dupla com José Meneses, alternando guitarra, violão, violão-tenor e cavaquinho, durante os programas radiofônicos “Nada além de dois minutos”, “Ao som da viola” e “Um milhão de melodias”. Ainda por cima trabalhava na Orquestra da Rádio Nacional, regida por Radmés Gnatalli, de quem foi colega e legou eterna amizade. Mas seria em trio que conseguiria o maior sucesso da carreira, quando, em 1953, compôs o dobrado “São Paulo Quatrocentão”, para os festejos do aniversário da cidade natal, em companhia de Chiquinho do Acordeom e letra de Avaré. A composição virou verdadeira febre, com recordes de vendagem de disco (algo em torno de 700 cópias) e interpretação da inclusive cantora na época, Hebe Camargo, reconhecida posteriormente como apresentadora de TV.



Duas contas

Garoto estreou como letrista ao compor o samba-canção “Duas contas”, em 1953, antecipando a bossa nova. No mesmo ano, embeveceu os presentes com a interpretação solo do Concerto nº 2 para Violão e Orquestra, dedicado a ele por Radamés Gnatalli, em pleno Teatro Municipal do Rio. Mas a história que o levara a se atrever no mundo da escrita começara um ano antes, quando, a convite do diretor musical do programa da Rádio Nacional, “Música em Surdina”, Paulo Tapajós, topou se alinhar a Fafá Lemos e Chiquinho do Acordeom naquele que ficaria conhecido como o “Trio Surdina”. Seguiram-se dois discos, e no primeiro deles vinha a música que comprovara seu atrevimento, sem rimas, levando o próprio autor dos versos à insegurança. Paulo Tapajós, que o incentivara, estava certo, a música correspondia a seu talento já comprovado como instrumentista, também na letra. E bastava: “teus olhos são duas contas pequeninas, qual duas pedras preciosas, que brilham mais que o luar”.



Gente humilde

A gravação de “Gente humilde” aconteceu informalmente, quase por acaso, como presente a um amigo querido de Garoto, o professor mineiro Valter Souto. Num acetato simples, eternizou-se o momento de inspiração que recaiu divino, com a espontaneidade que acalora os corações de artistas. A cena observada passaria incólume, não tivessem aquelas mãos o poder de restringir às cordas a leveza de um sentimento inalcançado. Afinal o poeta vê a árvore e se encanta por ela, e nos encanta com sua poesia. A mesma árvore que vemos todos os dias. Com auxílio de Vinicius e Moraes e Chico Buarque, a canção abraçou em 1970 versos que Garoto não disse, mas zumbiu.

“Comecei a tocar sozinho, e com o falecido Pinheirinho Barreto e Aluisio Silva formamos um novo grupo. Foi quando gravamos ‘Zombando da Morte’, um samba que se tornou muito popular.” Garoto



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 10/07/2011.

sexta-feira, 1 de julho de 2011




Quem foi, afinal de contas, Wilson Batista? O homem por trás de sucessos que pouco colocou a voz para ser ouvida em disco? O profícuo compositor, do interior do Rio de Janeiro, que fez carreira como galante dos bares da Lapa e da Esquina do Pecado? O rival de Noel Rosa, com quem alimentou polêmica acima de conceituações musicais? Ou mesmo malandro de terno branco e navalha no bolso? Nenhuma dessas hipóteses corresponde inteiramente ao caráter do autor de “Emília”, “Bonde de São Januário”, “Mundo de Zinco”, “Acertei no Milhar”, “Balzaquiana”. Para se entender melhor Wilson Batista é preciso ir ao encontro de sua origem: acendedor de lampiões. Que com pedras batidas fez o fogo de sua existência. E ao encontro de personagens memoráveis, os percebeu lampiões. Disso, chamou depois samba.



Lenço no pescoço

Embora tenha ficado com a vilania na disputa, por posteriores respostas menos inspiradas, Wilson Batista foi primeiramente provocado por Noel Rosa, que questionou a pose de malandro do garoto de Campos instalado no Rio de Janeiro. “Lenço no pescoço”, composto em 1933, exibe o modo de vida que Wilson acalentava para si. Além disso, denuncia a dificuldade do trabalhador honesto para se sustentar, como justificativa de sua posição ‘à la malandragem’. Por fim, há a menção à forma como eram vistos os compositores populares na época, através da frase: “eu sou vadio porque tive inclinação, no meu tempo de criança tirava samba-canção.” A música foi lançada por Silvio Caldas, com sua peculiar bossa. Dois anos depois, Wilson e Noel Rosa compuseram juntos, o samba “Deixa de ser convencida”, que permaneceu inédita até o registro de Cristina Buarque, em 2000.



Inimigo do batente

Wilson não se acanhava em tirar um sarro de quem lhe cruzasse o caminho. Tinha por hábito se intitular “Cabo”, e requerer ajuda aos outros com o seguinte maneirismo: “Tem um dinheirinho aí, major?”. Esses trejeitos salientes eram utilizados com muito brio para inspirar seus sambas, num deles, “Inimigo do batente”, de 1939, em parceria com o amigo português Germano Augusto, Wilson Batista tripudia sem dó em cima daqueles que duvidavam de seus talentos artísticos, ironizando a fala da mulher: “Ele dá muita sorte, é moreno, é mesmo um atleta, mas tem um grande defeito, ele diz que é poeta”, como quem diz: vá arrumar trabalho de verdade. Ao que este responde: quem pode, pode, major.



A mulher que eu gosto

Filho de um funcionário da guarda municipal e sobrinho de um maestro de banda, a “Lira de Apolo”, na qual estreou tocando triângulo, Wilson Batista viveu avesso á legalidade, mas não se fez de rogado sobre a herança musical. As duas influências o perseguiram durante a vida, rebelde em relação à primeira, convicto com a segunda. Chegado dos irmãos Meira, malandros famosos da Lapa, Wilson sempre cultivou em seu círculo de amizades, subversivos da ordem vigente. Algumas prisões lhe rechearam o currículo, e foram acrescentadas às suas composições temáticas controversas para a época. Parceiro de vários sambistas, Wilson Batista compôs com Ciro de Sousa em 1941, “A mulher que eu gosto”, na qual reclama da deslealdade de um amigo.



Preconceito

Wilson Batista teve sua primeira música lançada por Araci Cortes, composta quando ele tinha 16 anos. Depois, seguiram-se gravações de nomes recorrentes da época: Luís Barbosa, Almirante e Francisco Alves, Castro Barbosa e Murilo Caldas juntos, no sucesso “Desacato”, denotando seu crescente prestígio. Em 1941, o “Cantor das Multidões”, Orlando Silva, lançou “Preconceito”, parceria com Marino Pinto, depois regravada por João Gilberto. Como na letra da música, em que um apaixonado rapaz pobre se vê instigado a conquistar o coração de uma moça rica, as fronteiras, sempre presentes, acenavam trégua quando se ouvia samba, (“meu samba vai, diz a ela, que o coração não tem cor”) responsável pela aproximação entre os grandes cantores do período e os compositores populares, relegados, via de regra, a um segundo plano. Além disso, estampa-se o preconceito racial marcante.



Emília

No afamado Café Nice, Wilson Batista conheceu Erasmo Silva, com quem arquitetou conjunto com as presenças de Lauro Paiva ao piano e Roberto Moreno na percussão. Com a desfeita, permaneceram somente os dois primeiros, que passaram a se intitular “Dupla Verde e Amarelo”, participando, inclusive, de espetáculos na Argentina, Porto Alegre e apresentações em São Paulo. Tempos depois, Wilson Batista escreveu com Haroldo Lobo música que versava sobre uma união desejosa de soberania. Um oportuno “café preparado” simbolizava a perfeição exaltada. Lançada por Vassourinha em 1942, foi regravada por Roberto Silva, com sucesso semelhante. Se encontrasse “Emília”, Wilson, certamente, cairia a seus pés de amor.



Meus vinte anos

O samba “Meus vinte anos” revela a amargura que a nostalgia pode abarcar. Composto em 1942, em parceria com Silvio Caldas, que o lançou, Wilson Batista se vale da rejeição das mulheres para constatar o triste passar do tempo. A isso, se assemelham valores medíocres, artificiais, propagados pela cultura do consumo estético. Sem notar que o tempo, grande juiz da vida, exulta o que lhe é preservado, e se vai com o resto. “Ai eu daria tudo, para poder voltar aos meus vinte anos”, entoam versos tristes.

Louco (Ela é seu mundo)

Era notória nos arredores da Lapa, a fama de conquistador de Wilson Batista. Apesar disso, ele fixou residência no amor, ao se casar com Marina Batista e ter com ela dois filhos. No samba de 1943, “Louco (Ela é seu mundo)”, em parceria com Henrique de Almeida, Wilson apresenta a loucura como a condutora oficial do sentimento menos previsível do homem. Com versos que descrevem a agonia do protagonista, o compositor apresenta uma bela letra, que acompanha os passos sem rumo. Lançada por Orlando Silva, ganhou regravação de Nelson Gonçalves, que revive com maestria todas as nuances da melodia, João Nogueira, Noite Ilustrada, Joyce, Cristina Buarque, Aracy de Almeida, João Gilberto, Elza Soares e diversos outros, reafirmando a qualidade de permanência da música.



Diagnóstico

No final da vida, Wilson Batista compôs em homenagem ao beliscador de cordas, Nelson Cavaquinho, um dos grandes nomes de Mangueira, à qual também dedicou muitas músicas. No samba de 1943, “Diagnóstico”, em parceria com Germano Augusto, Wilson esnoba a pompa da medicina, ambicionada em oferecer soluções totalizantes, e rememora os desavisados: “não há remédio pra curar uma saudade”. Se fosse feito um exame no coração de Wilson, estaria constatado: sambista incurável.

Mulato calado

“Mulato calado” estranhamente consta como sendo de autoria de Benjamim e Marina Batista, esposa de Wilson. Tendo sido inclusive registrada por seu verdadeiro autor, além de Aracy de Almeida e Adriana Calcanhotto, entre outros, o samba retrata uma história dramática que exemplifica a realidade dos morros cariocas, ainda na década de 40. Revivida por Clementina de Jesus 30 anos depois de seu lançamento, em 1977, apresenta integralmente personagens complexos do cotidiano brasileiro, acostumados a conviver com vida e morte na mesma sentença. “Vocês estão vendo aquele mulato calado, com o violão do lado, já matou um, já matou um...”



Chico Brito

As margens sempre interessaram a Wilson Batista, por ser ele próprio, parte integrante delas. Por isso em seus sambas retratam-se comportamentos dos ditos inadequados, de gente simples, posta de canto. “Chico Brito”, de 1949, em parceria com Afonso Teixeira, é o herói dos pequenos que se deteriora em razão de maus tratos. Afinal “se o homem nasceu bom, e não se conservou, a culpa é da sociedade que o transformou.” Não por acaso, é feita a primeira referência à maconha na música brasileira. Registrada por seu autor, foi lançada por Dircinha Batista, e regravada por Paulinho da Viola.

Mãe solteira

Wilson Batista nunca teve vergonha ou medo de abraçar os temas mais ásperos, ou seja, nunca mascarou a realidade. Talvez, por isso, a tragédia se insurja tão naturalmente e viva em suas músicas. O drama da Maria que ateia fogo às próprias vestes anuncia a hipocrisia de uma sociedade preconceituosa que se não capaz de uma violência física, pratica-a de maneira ainda assim massacrante. Composto em 1954 em parceria com Jorge de Castro, avisa no enunciado: “Hoje não tem ensaio, na escola de samba, o morro está triste, e o pandeiro calado.”



Nega Luzia

Há na música de Wilson Batista o fogo de seus personagens, reluzentes lampiões. Ele que em sua mocidade pretendeu tornar-se marceneiro enquanto compunha versos para os bandos dos quais participava. E que depois trabalhou como eletricista e ajudante de contra-regra no Teatro Recreio, para assim se aproximar das grandes estrelas. E foi por essas curvas, que fez parte da Orquestra de Romeu Malagueta, sendo crooner e tocando pandeiro. Embora só soubesse tocar caixinha de fósforos e demonstrasse dificuldade para escrever. Encontrou todo tipo de gente, do elegante Ataulfo Alves, ao pilantra Germano Augusto, bicheiro, conhecido como China, para quem vendeu muitos sambas. E foram esses sambas que cravaram o nome de Wilson Batista em lugar de destaque, flamenguista assumido, boêmio orgulhoso. Afinal como a “Nega Luzia” do samba de 1957, em parceria com Jorge de Castro, Wilson botou fogo no morro, na música brasileira, sem receber Nero, mas presenças até mais ilustres. Despediu-se em 1968, apenas ao parcial. Melodias e versos propagam-se infinitamente.

“Ganha-se pouco, mas é divertido” Wilson Batista



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 03/07/2011.

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