segunda-feira, 27 de dezembro de 2010



O Natal se aventura à meia-noite com o som que vem do choro do Menino Jesus.
O som de passos que caminham em direção ao Salvador trazendo-lhe oferendas.
Os Três Reis Magos presenteiam como graça, agradecimento.
É o sinal de devoção àquele que eles acreditam trazer em si a soma da união, dos bons valores, do amor à vida que se espalha em cada grão de areia, ou gota d’água.
É o som surdo duma alegria que se vê no rosto de Maria e se faz na contemplação de José.
É o som dos animais que permeiam a casa escolhida para nascer o Menino, na simples manjedoura que lhe abriga tal qual sua sabedoria perene.
Muita antes do som, há o barulho.
Muito antes de castelos, palácios, riquezas, há manjedouras.
Por isso muito antes da neve, dos sinos, das luzes e da barba branca que acolhe o corpo vermelho de um senhor bondoso e carinhoso para com as crianças há a criação da fé ao homem, ao próximo, ao suplício eterno pela caridade pura e desprovida de interesses.
Pelo viver em ver o outro viver bem.
E alegrar-se pelo outro como a si.
Então haverá o som de harpas tocadas pelos anjos, tamborins tocados pelos sambistas e tambores tocados pelos reis magos do axé.
Pois lá no início houve o deslumbramento provocado pelo choro do Menino Jesus e o sorriso cândido dos que permaneceram acortinados nele.
A isso, comemora-se o Natal.

Lido na Rádio Itatiaia dia 26/12/2010.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010




Noel de Medeiros Rosa, ou simplesmente Noel Rosa, completaria 100 anos de vida em 2010.
O poeta da Vila, como ficou conhecido por ter nascido, vivido e consagrado o bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, nasceu no dia 11 de dezembro de 1910, e faleceu no dia 4 de maio de 1937, vítima de uma tuberculose.
Noel Rosa foi um poeta jovem, que nos deixou antes de completar 27 anos.
Um poeta jovem que nos presenteou com todos os tipos de cantos.
O canto alegre, o canto triste, o canto que enfeitiçou a Vila e até hoje é sentido. O canto do samba rindo que canta a dama da Lapa e toda a dor que existe. Todo o amor que existe.



“Batuque é um privilégio
Ninguém aprende samba no colégio
Sambar é chorar de alegria
É sorrir de nostalgia
Dentro da melodia”








Para Noel, o samba foi uma espécie de melhor amigo.
Foi seu sentimento na voz da amiga Aracy de Almeida.
Um samba apaixonado, um samba de protesto.
Um samba que se equilibra na corda-bamba do amor que perde a batalha, mas não a guerra.
Um samba que é o amor em verso.



“A estrela d’alva
No céu desponta
E a lua anda tonta
Com tamanho esplendor
E as pastorinhas
Pra consolo da lua
Vão cantando na rua
Lindos versos de amor”


Noel Rosa é a conversa gostosa no botequim da esquina.
A dúvida na hora de escolher a melhor roupa para a festa fina.
O deboche em cima da Ilustre Visita que não poderia ser mais fingida e a disputa bem humorada e saudável com Wilson Batista.
Entre bebidas e cigarros, amores e seus altos e baixos, Noel Rosa é o poeta que coloca o samba no lugar mais alto da música popular brasileira.



“Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila não quer abafar ninguém
Só quer mostrar que faz samba também”








Pra quê mentir?
Se o samba sem Noel Rosa não seria o que é.
Noel Rosa é o Pierrô apaixonado, o malandro magoado.
É o povo a perguntar com maldade pela tal honestidade.
É o malandro de terno branco que une o morro ao asfalto.
Bebendo a sua cascatinha, fazendo batuque, choro e marchinha.
E ás vezes chorando por Ceci.



“Pra quê mentir?
Se tu ainda não tens esse dom de saber iludir?
Pra quê mentir?
Se não há necessidade de me trair?”


Noel faz do samba sua filosofia.
Sua voz ecoa pelos três apitos da fábrica de tecidos que buscam encontrar enfim a Dama do Cabaré.
Um palpite feliz é ouvir Noel Rosa, filósofo do samba!

“Quando o apito
Da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
Mas você anda sem dúvidas bem zangada
E está interessada
Em fingir que não me vê”




Noel Rosa pega o samba no berço, carrega no colo e o leva ao seu lugar de merecimento.
Porque o samba não tem tradução no idioma francês.
O samba só tem tradução no idioma simples e refinado de Noel, poeta da sabedoria que morreu menino.
Poeta da sabedoria que fez do samba seu refrão mais bonito.
O último desejo é ouvir Noel Rosa, sambista de todos os desejos.



“Nosso amor que eu não esqueço
E que teve o seu começo
Numa festa de São João
Morre hoje sem foguete
Sem retrato e sem bilhete
Sem luar, sem violão”




Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 12/12/2010.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010




O rosto negro iluminando um sorriso branco são as primeiras armas que o General da Banda dispõe. Sem firulas ele ameaça com voz despojada de brasileirismo que cedo perdeu os pais e num rompante alcançou degrau artístico. Por ordenamento sugestivo do Capitão Furtado, radialista da Difusora de São Paulo, virou Blecaute e lançou para o carnaval sucessos do povo: Maria Candelária, Pedreiro Waldemar, Maria Escandalosa, Natal das crianças. Todas emergiram com letra maiúscula de sua garganta privilegiada. Otávio Henrique de Oliveira não foi nada mais que um cantor e compositor esquecido pela grife da música brasileira, mas alavancado às alturas em sua época áurea e definitiva.



Elegantemente trajando a farda que lhe foi ofertada, Blecaute se investe de alamares e dragonas para desfilar com alegria expressiva ao lado do Rei Momo, Rainha Moma, suas Princesas e Cidadão Samba. O ponto de macumba é sua criação refletida na fantasia que usa. Moldada por Sátiro de Melo, Tancredo Silva e José Alcides, começou a persegui-lo na rua. Até que ele foi certa noite em direção à batucada: “Chegou o General da Banda, ê! ê!, chegou o General da banda, ê! á!”. Em 1949, o pico de energia nas ruas chamava-se Blecaute.



Pedreiro Waldemar

Blecaute elogiava sem disfarces o querido amigo Wilson Batista, “um mulato frajola, muito elegante, alegre, torcia pro Flamengo, por sinal, um garoto bacana à beça”. Foi ele, ao lado de Roberto Martins, o autor da marchinha de 1949 que elevou o garoto de Espírito Santo do Pinhal, no interior de São Paulo, ao primeiro trampolim na capital farrista. Durante a festa mais comemorada do ano havia unanimidade em saltitar a melodia espessa da dura vida do Pedreiro Waldemar, que “faz tanta casa e não tem casa pra morar, leva a marmita embrulhada no jornal, se tem almoço nem sempre tem jantar, (...) constrói o edifício e depois não pode entrar”. Você conhece?



Maria Candelária

Grande Otelo era o inspetor de gafieira que exigia: “dança direito ou desce!”, no primeiro filme que Blecaute atuou, ainda como figurante, “Tristezas não pagam dívidas”. Depois, seguiu carreira bem sucedida no cinema, participando de 20 filmes, num deles, intitulado “Tudo Azul”, de Moacyr Fenelon, entoava a sátira “Maria Candelária”, calcada na conhecida fórmula de abuso por parte de algumas funcionárias públicas. Essas costumavam esperar ônibus no ponto que dá sobrenome à protagonista. Se bem que elas preferiam mesmo andar de pára-quedas, como sugerem Klécius Caldas e Armando Cavalcanti.

Maria Escandalosa

O cantor Nuno Roland contracenou com Blecaute e Marlene no espetáculo Carnavália, encenado no Rio de Janeiro em 1968. Antes ele havia sido o responsável por apresentar o carnavalesco General à dupla Klécius Caldas e Armando Cavalcanti, nos corredores da Rádio Nacional. Dessa confraternização caiu na folia a desinibida “Maria Escandalosa”, que em 1955 Blecaute cantava rindo e dançando com os braços, como era de costume, mais um sucesso.



Piada de Salão

As dificuldades de fala eram tiradas de letra por um descontraído Blecaute que saboreava a gagueira do personagem com irredutível euforia. Ele que havia sido engraxate e entregador de jornais depois de ficar órfão aos 6 anos e antes de realizar o sonho de cantoria, era especialista em vencer barreiras. E por isso mesmo dava tom especialmente delicioso à “Piada de Salão”, da dupla que o municiava, Klécius Caldas e Armando Cavalcanti, no ano de 1954: “É ou não é, piada de salão, se acham que não é, então não conto não...”

Papai Adão

Blecaute colecionou muitos admiradores que adoravam seu jeito afável e de bem com a vida, esbanjando largo sorriso. Além disso, era conhecido também pela elegância, tanto dos passos como das vestimentas. A cronista Eneida dizia: “Olha que elegância de porte e que charme de sorriso.” Mas o traço mais marcante de Blecaute sem dúvida nenhuma era a espontânea simpatia, contida em sua maneira sinuosa de cantar ditados tão populares: “Papai Adão, Papai Adão já foi o tal, hoje é Eva quem manobra, e a culpada foi a cobra”. A divertida brincadeira sobre as relações conjugais é mais um exemplo da bem sucedida comunhão entre Blecaute e Klécius Caldas & Armando Cavalcanti.



Natal das crianças

“Natal das crianças” comemora a bonita inocência que Blecaute guarda em seu canto suave. É com singeleza que ele compõe a harmonia e imita os sinos que aguardam Papai Noel. Na música de 1955, que tornou-se clássica e recebeu mais de 40 regravações, dentre elas a de Carlos Galhardo, a celebração é agraciada com o clima de bondade que merece ter, sob a batuta do espaçoso sorriso branco que ocupa a cara inteira dum negro orgulhoso de simpatia e samba. Blecaute não é Blecaute só no nome artístico. É também na união gostosa de música e sabedoria em uma única risada ao povo. Uma risada sua já é suficiente. Mas ele não se cansa de distribuí-las, como presentes. Ao som de palmas e vibrantes marchinhas, marche General, a banda é sua!



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 05/12/2010.

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