terça-feira, 13 de julho de 2010




Um terno alinhado, uma camisa de botão, para as ocasiões mais especiais uma gravata, cabelos penteados para trás, anel de brilhante no dedo, metralha na cintura e na garganta, no gogó, como ele dizia. Assim ele subia ao palco, disparava o vozeirão e era adorado por seu povo. Com sua porção sofisticada e sua porção considerada brega Nelson Gonçalves agradava tanto ao gosto popular como aos ouvidos mais exigentes. Porque Nelson cantava de tudo, tinha voz para cantar de tudo, e cantava como ninguém. Escolhia seu repertório através das canções que mais lhe comoviam e se encaixavam em sua voz. E era exatamente por causa dessa última condição que ele cantava de tudo. A voz de Nelson Gonçalves era maior até que as próprias canções que cantava. Maior do que o próprio mito em torno dele. Nunca ouve voz capaz de vibrar tanto quanto aquele grave. Quando cantava os versos de “Pensando em Ti” com a voz embargada por supostas lágrimas ou concedia a força necessária para a “Renúncia”, Nelson costumava dizer que ele mesmo se emocionava com suas interpretações. Era um homem vaidoso, que gostava de se elogiar, centrado em si, que deixou suas mulheres, sua mãe e seus filhos. Mas que deixou principalmente sua voz, para que pudéssemos ouvi-la e nos emocionar como ele. Municiado por seus “dós-de-peito” Nelson cantava sem nenhum esforço. Cantar, para Nelson Gonçalves, era a coisa mais fácil do mundo.



“Eu amanheço pensando em ti
Eu anoiteço pensando em ti
Eu não te esqueço
É dia e noite pensando em ti
Eu vejo a vida pela luz dos olhos teus
Me deixa ao menos
Por favor pensar em Deus”

Até hoje não se tem certeza do dia em que aquele menino batizado Antônio Gonçalves Sobral nasceu, em Santana do Livramento, no interior do Rio Grande do Sul. No entanto, sabe-se dizer com exatidão quando foi que Nelson Gonçalves nasceu para o mundo. Foi quando ele começou a cantar. Muito antes da cantora Sônia Carvalho rebatizá-lo, Nelson Gonçalves já era Nelson Gonçalves. Muito antes de acompanhar seu pai, que se fingia de cego e tocava violão para arrecadar uns trocados, ele já era Nelson Gonçalves. Muito antes de subir naquele caixote de papelão. Nelson Gonçalves nasceu Nelson Gonçalves. Nasceu com aquela voz que o consagraria e que seria também a senha para sua ruína. Depois de batalhar muito e alcançar sucesso estrondoso com clássicos como “A Volta do Boêmio”, “Meu vício é você”, ambas de Adelino Moreira, seu parceiro mais freqüente, “Maria Bethânia”, “Carlos Gardel”, “Normalista”, “Segredo”, “Marina”, dentre tantos outros, os confetes e serpentinas que lhe caíam na cabeça transformaram-se em pó branco, e em 1965 ele seria preso. Restava a Nelson agora, eleito diversas vezes Rei do Rádio, dar a volta por cima. Após vários romances e casamentos conturbados com Elvira Molla e a cantora do Trio de Ouro Lourdinha Bittencourt, Nelson se juntava agora à Maria Luiza. E seria ela que tentaria vender seus shows em circos e casas pequenas quando ninguém o queria, seria ela que agüentaria surras homéricas e não reclamaria. E foi para ela que Nelson Gonçalves, um ano depois de ser preso, compôs uma música em agradecimento e homenagem. Ela que esteve com ele durante os piores dias de sua vida. Muitas lágrimas rolaram no caminho dos dois.



“Eu chorei
Pela segunda vez na minha vida
Quando minha vida se complicou
Tínhamos então mais vinte anos
Mágoas, saudades, desenganos
Lembro-me bem do teu olhar esquisito
Quando te olhei surpreso e muito aflito
E uma lágrima dos olhos me rolou”

“Fracasso, fracasso, fracasso afinal
Por te querer tanto bem
E me fazer tanto mal”

O desejo de cantar herdado do pai veio acompanhado pela boemia que Nelson levou para toda a vida. Embora tenha se livrado da cocaína ele nunca largou o cigarro, a jogatina e a bebida. E esses eram alguns dos motivos que o levavam a cometer covardias contra suas mulheres, e embora tenha batido em todas elas, ninguém apanhou mais de Nelson Gonçalves do que ele mesmo. Como o político que nunca conseguiu ser, Nelson tentava agradar aos outros somente no palco, quando cantava suas mágoas, seus amores e suas tristezas. Mas cantava e principalmenta contava também suas conquistas. Nelson foi sempre chegado a boas histórias como brigas inesquecíveis com malandros da Lapa e lutas de boxe que se tornaram históricas. Era comum também mentir sobre o número de filhos, que foram tantos que ele provavelmente perdeu a conta. Se sua fala soava muitas vezes inapropriada, gaga, taquilárica, controversa, ele sabia exatamente o que queria dizer quando cantava, com a autoridade concedida por sua voz grave como foi sua vida, imensa como foram seus amores, destrutiva e emblemática como foi seu apelido, capaz de destruir corações e acariciar ouvidos, Nelson Gonçalves Metralha. A vida o conduziu, as brigas lhe feriram, mas a voz o eternizou.



“Naquela mesa ele sentava sempre
E me dizia sempre o que é viver melhor
Naquela mesa ele contava histórias
Que hoje na memória eu guardo e sei de cor”

Com o humor afiado que lhe era peculiar, sempre com tiradas irônicas e sorrisos sacanas, Nelson dizia que se considerava um “dinossauro”, e para ele não importava “ser o número um em Miami ou o segundo em Veneza”, pra ser feliz ele queria “o quinto lugar nas paradas de Madureira ou o terceiro na periferia de São Paulo.” Nelson Gonçalves nunca se desfez de sua origem simples, sofrida, e o comportamento que teve durante a vida esteve sempre associado à essa característica. Por isso mesmo, ele caiu nos braços do povo como nos braços de suas mulheres, com a diferença que abandonou todas elas, e dos braços do povo, nunca saiu.

“Não, não, não, não amor
Dos meus braços tu não sairás
Se tentares me abandonar
Nem sei de que serei capaz”

Nelson Gonçalves era um homem de temperamento difícil, um boêmio, um ingênuo, um tirador de sarro que teve vida errante e voz inalcançável. Começou imitando Orlando Silva e terminou recebendo prêmio concedido somente à Elvis Presley, por ter ficado 55 anos na mesma gravadora, a RCA-Victor. O personagem Nelson Gonçalves. A Voz de Nelson Gonçalves, aquele que não conheceu Frank Sinatra, mas que foi o cantor mais popular de sua época do país mais rico em música de que se tem notícia.



“Eu quero pra mim seu amor, só porque
Aceito seus erros, pecados e vícios
Hoje na minha vida, meu vício é você”

Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 11/07/2010.

4 comentários:

Alfredo Ramos disse...

Um reparo: ele ficou somente com o vicio do cigarro. Jogatina não era mais a dele. E bebida somente socialmente e olha lá.

Alessandra Rezende disse...

"dentre tantos outros, os confetes e serpentinas que lhe caíam na cabeça transformaram-se em pó branco, e em 1965 ele seria preso"

perfeito, Rapha !!!!
ficou mto bom!!!

Anônimo disse...

muito bonito,lindo mesmo,sou fã de nelsom gonçalves,na minha infancia era o que mais se ouvia em minha casa,nelsom é e serar para sempre único,não tem ígual.

Selma Nardacci disse...

Não teria Deus imprimido sua voz de barítono em um ser humano só para brincar conosco?
Acho que sim! Deus emprestou sua voz a Nelson Gonçalves, pois todas às vezes que ouço sua voz fico com a minha alma inebriada de prazer e contentamento.
Quando Nelson canta, não importa o tema, meu espírito sai do corpo, os meus cabelos esvoaçam, como se dois ventos diferentes os dispersassem. Surgem asas imaginárias, percorro o espaço, transponho paredes, levito com roupas leves em cores de marfim.
Atinjo o clímax da minha existência.
Espiritualizo, experimentando êxtase completo...
E nada material é mais importante do que o infinito.
Selma Nardacci

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