segunda-feira, 21 de março de 2011




Artista de circo é difícil de achar. Artista espontâneo, que não toca instrumento e sabe rimar letra com melodia. Artista que faz arte até de dentadura, e é desenhista de mão cheia, embora os bolsos permaneçam vazios. Artista de circo desequilibra na corda bamba, como quem disfarça estar em perfeito estado de alegria, acostumado com tristezas natalinas. Assis Valente teve coração de artista e na Praia do Russel morreu em público. O povo cantou sua travessia: “Brasil Pandeiro”, “Uva de Caminhão”, “Fez bobagem”, “Camisa listrada”, provam a eternidade do artista de circo.

Boas Festas

A canção natalina de maior sucesso nacional em todos os tempos é a triste constatação da solidão feita por um melancólico Assis Valente. Nascido no interior da Bahia, o compositor morava no Rio de Janeiro no Natal de 1932 quando teve inspiração para compor a música. Gravada um ano depois por Carlos Galhardo, com acompanhamento da Orquestra Diabos do Céu, regida e arranjada por Pixinguinha, faria sucesso inúmeras vezes nas vozes de Maria Bethânia, Roberto Carlos, Luiz Melodia e mais recentemente o grupo mineiro Pato Fu. Em versos, Assis Valente declara seu pedido não atendido por Papai Noel, pois para ele a “felicidade é brinquedo que não tem”.



Cai, cai balão

As festas juninas brasileiras também tiveram a intervenção pontual de Assis Valente. Para a comemoração do mês de frio ele compôs a suave marcha “Cai, cai balão”, lançada por Francisco Alves e Aurora Miranda no ano de 1933. Os versos lançam enredo de uma sagaz sabedoria popular: “quem sobe muito, cai depressa sem sentir”, e expressam um teor implícito na personalidade de Assis: a desconfiança das glórias, que segundo o próprio, numa explicação a Ary Barroso de uma das tentativas de suicídio, não “resgatam letras”.



Maria Boa

O primeiro sucesso de Assis Valente registrado por um grupo vocal foi o samba “Maria Boa”. Lançado pelo “Bando da Lua” no carnaval de 1935 ele acompanhou os foliões com a mesma alegria que o grupo iria acompanhar Carmen Miranda, musa inspiradora para quem Assis dedicou vários versos posteriores. A letra esbanja a sorte do autor de ter se encontrado com a Maria do título, que segundo ele, não ia “com a cara do homem quem tem a falinha macia”. Em 2001, Ney Matogrosso a regravou no álbum “Batuque”.



Camisa listrada

A camisa presente nas passarelas de rua do carnaval de 1938 foi a listrada de Assis Valente. Nela é possível perceber o desespero da mulher que vê o seu homem desfilar na avenida vestindo suas roupas, sua saia e sua combinação. A música é uma combinação entre alegria e tristeza, e mostra de forma debochada e simples o contraste entre a fantasia do homem que sai para se divertir e a preocupação da mulher que assiste àquilo com ares de repreensão. A música retrata o descompasso do amor entre a mulher que sofre em vão e o homem que vai à folia do carnaval. É um apelo que a mulher faz para que seu homem não se fantasie.



...E o mundo não se acabou

Depois do estouro de “Camisa listrada”, Carmen Miranda gravou outra jóia do repertório de Assis Valente, no mesmo ano de 1938. “E o mundo não se acabou” é um samba-choro que brinca com a possibilidade milenar do fim do mundo. Alardeado por boatos de nova guerra mundial e coalizão de cometas contra a Terra, o caso virou gostosa música que premeditava o arrependimento daqueles que acreditavam no fim, caso a confirmação não viesse: “beijei a boca de quem não devia, peguei na mão de quem não conhecia, e o tal do mundo não se acabou”.

Uva de caminhão

A vida de Assis Valente foi cercada de polêmicas e contradições. Muitos especulam sobre provável homossexualidade reprimida e gastos com amantes que o levaram ao endividamento, inclusive pessoas próximas, como a cantora Marlene que gravou o primeiro LP só com músicas de Assis, e seus biógrafos Francisco Nunes Silva e Dulcinéa Nunes Gomes. Uma das músicas de seu repertório que desperta interpretações controversas é o samba-revista “Uva de caminhão”. Segundo o jornalista Moacyr Andrade, a iminente ingenuidade da recitação de sucessos carnavalescos como “Florisbela”, “Flauta de Bambu”, “Pirulito” e “A Pensão da Dona Estela”, escondem a intenção do autor de falar sobre gravidez e aborto. Já para o pesquisador musical Rodrigo Faour, a música explicita a confirmação dos desejos homossexuais do compositor. Lançada mais uma vez por Carmen Miranda, “Uva de Caminhão” foi o último sucesso da dupla antes da Pequena Notável embarcar para os Estados Unidos, em 1939.



Recenseamento

A última música de Assis Valente gravada por Carmen Miranda foi o samba “Recenseamento”, em 1940. Nele a história verídica do censo geral determinado por Getúlio Vargas servia de mote para a crônica sentimental do compositor, que aproveitava o tema para dar o seu pitaco irreverente sobre a medida. E a favela, que já lhe prestara homenagens com o morro de Mangueira a cantar suas músicas, era o plano de fundo ideal, na voz da moradora que listava seus bens: céu azul, Pão de Açúcar sem farelo, e outros.

Brasil Pandeiro

Acarajé, cuscuz e abará, todos esses pratos preparados com o molho da baiana, fazem com que o Tio Sam do samba de Assis Valente não resista ao sabor da comida e do samba brasileiro. Composto em 1941, “Brasil Pandeiro” dedica seus versos a cantar as delícias do Brasil, como seu samba, seu terreiro, sua gente bronzeada e sua rica culinária, que desperta até o interesse dos distantes norte-americanos. A música havia sido feita para Carmen Miranda, espécie de amor platônico de Assis Valente, que acabou recusando, supostamente por possuir versos que exaltavam a ela própria. Por conta disso, foi lançada pelos “Anjos do Inferno”, grupo vocal que emplacaria diversos êxitos da lavra do compositor, e mais tarde renovada na interpretação dos “Novos Baianos”, em 1972.



Fez bobagem

Um mês depois do lançamento de “Brasil Pandeiro”, Assis Valente atirou-se do Corcovado e ficou preso em uma árvore, o que salvou sua vida do suicídio. Naquele mesmo ano, em janeiro, havia nascido sua única filha, Nara, fruto do casamento com Nadyle da Silva, 15 anos mais nova. O casamento não durou muito tempo, ao contrário da relação com a filha, que teve o nome tatuado no corpo do pai, na época considerada uma subversão. Os desentendimentos amorosos foram mais uma vez retratados em música por Assis, no ano de 1942, em samba intitulado “Fez bobagem”, lançado por Aracy de Almeida. A letra escancarava o desacordo de um enciumado triângulo amoroso, e recebeu versões de Elza Soares, Teresa Cristina e Caetano Veloso. A dor trazida por Assis era dedilhada em versos: “dá vontade de chorar, e de morrer”.



Boneca de pano

O derradeiro sucesso popular de Assis Valente foi o samba “Boneca de pano”, gravado pelos “Quatro Ases e um Coringa”, em 1950. Ele que estava acostumado a portar sempre foto e caneta para distribuir autógrafos já não convivia com o sucesso de perto, devido à época que se abria para a bossa nova na canção brasileira. A música trazia o relato de uma vivência de Assis, como era por costume em suas letras, o encontro com uma moça da Lapa que tivera trágico final. Como viria a acontecer com o próprio autor, que deixou órfã de seu talento a arte brasileira de inventar melodias e versos, por decisão própria, diante do espanto admirado daqueles que presenciaram sua essência musical. 100 anos depois de seu nascimento, foi-se o espanto, permanece a admiração.



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 20/03/2011.

1 comentários:

Arlene disse...

Apaixonante!Assis Valente, era mesmo uma pessoa triste. as letras de suas músicas não deixam dúvidas. Gostaria tanto que estivesse vivo.

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